CONTARDO
CALLIGARIS
O fim da infância?
O quarto de criança ideal é fofo:
oferecemos à criança uma caricatura do amparo que nos faz falta
QUANDO AS notícias comunicam o
número de mortos e feridos num atentado, numa catástrofe ou numa chacina, nunca
falta o número de crianças. Podemos não saber se morreram mais homens ou
mulheres, mas, se houve crianças entre as vítimas, seremos informados. E, das
imagens que a reportagem nos mostrará, a mais tocante será a de um pai ou de
uma mãe, carregando o corpo inerte do filho ou da filha.
Menos de dois séculos atrás, a
frase "houve 12 vítimas, entre as quais quatro crianças" produziria
provavelmente um pequeno alívio, como se a perda das crianças fosse menos
deplorável do que a dos adultos. Hoje, é o inverso.
Da mesma forma, hoje, se a
imprensa escrevesse que houve, entre as vítimas, cinco idosos, reagiríamos
pensando que é uma pena, claro, mas, menos mal: eles já estavam de saída. Ora,
um hipotético leitor de dois séculos atrás pensaria que os idosos são a perda
irreparável: afinal, uma criança, ninguém sabe no que ela vai dar, enquanto um
idoso é patrimônio consolidado. Num incêndio, você prefere que queime um
caderno quase virgem ou o outro, no qual você anota seu diário há décadas?
A mostra "The Century of the
Child" (o século da criança), no Museum of Modern Art, de Nova York,
fechou em 5 de novembro. Mas o catálogo (com o mesmo título, publicado pelo
próprio museu) é melhor que a mostra: os documentos que foram expostos são
todos reproduzidos e acompanhados por uma coletânea de ensaios excelentes.
A tese geral é que, de 1900 a
2000, foi inventado e construído um mundo especificamente destinado às crianças
e a suas necessidades presumidas, na sala de aula e na casa, na hora de
aprender, de brincar e de se divertir.
Ao longo desse século, as
crianças deixaram de ser consideradas como adultos em miniatura ou incompletos
para se tornar uma espécie autônoma e, supostamente, melhor do que a nossa -em
tese, sem as más influências dos adultos, elas poderiam ser geniais, inocentes
e puras como o bom selvagem.
Pouco importa se perguntar o que
é realmente uma criança e de qual barbárie ela seria capaz sem a ajuda dos
adultos. A invenção da especificidade da infância não diz nada sobre as
crianças em si, mas revela algo sobre os adultos. Pois essas crianças, tão
diferentes de nós, encarnam o que gostaríamos de ser. Dois exemplos.
1) O quarto de criança de classe
média (o habitat infantil idealizado) é dominado pela estética do fofo. Os
adultos se livram do desconforto da arte e das incertezas do gosto para
"apreciar' sem culpa patinhos de madeira, bonecos, florzinhas e
estrelinhas no teto. Eles também se livram da história: nenhum móvel e nenhum
objeto antigos (a higiene é a desculpa). Com esse interior atemporal, de conto
de fada, o adulto moderno, atormentado por um irremediável desamparo
existencial (falta de pátria, de classe, de tradição, se não de família),
inventa, para a criança, a caricatura do amparo que ele deseja para si.
2) Quase no meio do século da
criança, em 1938, Johan Huizinga publicou "Homo Ludens" (o homem que
joga - ed. Perspectiva) -o clássico, que, como se sabe, situa o jogo como
atividade humana por excelência.
Vale a pena lê-lo ou relê-lo pelo prazer, e
também para entender quanto e como a proposta de Huizinga foi, por assim dizer,
extraviada -resultando numa massa de escritos em favor do divertimento, do
ócio, das férias, do brincar e do infantil como atividades muito mais humanas,
produtivas e interessantes do que o trabalho, a concentração, a reflexão e a
maturidade.
Entende-se que crescer tenha se
tornado difícil para as crianças, pois elas não podem parar de brincar, ou
seja, de encenar a "virtude" do jogo, que nós, supostamente,
perdemos.
No começo do catálogo que citei,
Juliet Kinchin, curadora, escreve: "Falando solenemente para a câmera em
1995, como parte do documentário ficcionalizado 'Children´s Video Collective',
um menino faz a predição seguinte: 'No futuro, as crianças não existirão mais.
Minha geração é provavelmente a
última geração de crianças. Ou melhor, a última geração a ter a experiência da
infância. Isso não significa necessariamente que chegou o momento de guardar as
coisas da infância. Ao contrário, isso pode significar que o uso das coisas da
infância talvez acabe sendo prolongado indefinidamente, até a morte'".
Ou seja, a infância não vai
acabar, mas os adultos já estão em extinção.
ccalligari@uol.com.br
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