20
de dezembro de 2012 | N° 17289
J. A.
PINHEIRO MACHADO |
Um instante de gratidão
Era
apenas um menino de 18 anos, prisioneiro em São Paulo com outros supostos
subversivos, aguardando ser interrogado. A época não fazia bem à saúde: 1968, o
trágico ano do AI-5, o Ato Institucional número 5, que eliminava praticamente
todas as garantias civis. O sentimento de medo e terror, com a lembrança de
tantas histórias de torturas indizíveis, agravada pela árdua decisão interior
de não “entregar” ninguém. Até onde resistiria?
Um
homem muito grande e muito forte entrou na sala e apontou: “Você vem comigo!” –
disse com a voz grave e ameaçadora que fizeram lembrar de imediato a carranca
do João Bafo de Onça dos desenhos animados da infância.
A
caminhada por um corredor na penumbra lembrou Caryl Chessman em seu último
trajeto rumo à câmara de gás. Entramos numa sala pequena e sem janelas, uma
porta sólida de madeira maciça. Aqui, posso gritar à vontade que ninguém vai
ouvir – foi o primeiro pensamento inevitável. Uma mesinha, com uma máquina de
escrever, duas cadeiras.
“Senta
aí!” – ordenou o João Bafo de Onça. Retirou uns papéis de uma pilha e leu com
atenção. O medo aumentava: meu Deus, todos esses papéis! Mas a decisão improvável
enrijecia os músculos: vou aguentar firme! Depois de um exame da papelada que
durou aproximadamente um século, o João me olhou com curiosidade:
“José
Antonio Gomes Pinheiro Machado. Qual é o seu parentesco com o falecido senador
José Gomes Pinheiro Machado?”
A
resposta seria: sobrinho bisneto. Mas, a urgência do momento autorizou uma
aproximação:
“Bisneto.”
“Que coincidência. O seu bisavô salvou a vida da minha avó.”
“O
que aconteceu?” – foi a pergunta perplexa.
“O
meu avô era motorista do seu bisavô. Contou ao senador Pinheiro que minha avó estava
muito doente, à morte. Imediatamente, o senador trouxe-a para a casa dele,
chamou seu médico particular que cuidou dela e salvou-a.”
O
interrogatório tornou-se um episódio protocolar: a possível tortura substituída
por insólita gratidão. Bem diferente de outros tristes constrangimentos que
enfrentei e luto até hoje para esquecer. Procuro ficar com essa memória daquele
instante de intensa humanidade de um homem que, por certo, foi treinado para não
ter compaixão. Muito menos gratidão.
Esse
incidente, de forma inevitável, faz lembrar T.S. Eliot. Na sua vida, tão
extraordinária quanto sua obra, que muitos aproximam a Dante e Virgílio, o
grande poeta norte-americano cultivou uma esperança: acreditava ser possível
reavivar nos seres humanos percepções morais perenes “que tornam possíveis a
ordem, a justiça e a liberdade”.
Seu
ilustre amigo e biógrafo Russell Kirk, numa bela imagem, escreveu que numa
distante época futura, quando a história do século 20 parecer bárbara e
desconcertante como as crônicas da Escócia medieval, a humanidade e a aguda
perspicácia de Eliot talvez venham a ser lembradas como a luz mais clara que
resistiu às trevas universais.
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