Arnaldo
Jabor - O Estado de S.Paulo
04
de dezembro de 2012 | 2h 10
Os cabelos de
Celeste
Um
dia meu avô me apresentou a sua amante. Chamava-se Celeste e tinha o cabelo
muito ruivo, desgrenhado, olhos muito azuis que me fitaram com um afeto risonho
onde havia uma ponta de tristeza. Ela me beijou trêmula e carente como uma avó
postiça. Eu era o único membro conhecido de uma família que a excluíra da vida.
Ao mesmo tempo, ela se sentia vítima e traidora, o drama das amantes da época.
Daí a melancolia que reprimia com seu sorriso. D. Celeste.
"É
de uma importante família de militares", dizia meu avô com secreto orgulho
da namorada. "Que gracinha... você é xará do seu avô..." Eu não sabia
o que era 'xará' - tinha uns 7 anos, no máximo. Meu avô não disse nada, mas eu
via que entre os dois havia mais do que a amizade de colegas. Havia uma
intimidade disfarçada, toques rápidos nos braços, carícias que paravam no meio,
um cuidado suspeitoso comigo, tão pequeno para os segredos da vida.
Foi
a primeira vez que eu a vi. A segunda vez foi muitos anos depois.
Minha
mãe e minha tia sabiam do caso. Ouvia-as falando 'por alto' ao telefone,
comentando o 'crime' de meu avô, referindo-se em código a ela, como 'a
sujeitinha, a tal'. Minha avó, creio, não sabia de nada. O estranho é que eu
via tudo, na lucidez infantil diante do óbvio. E era mais intrigante ainda o
fato de que ela parecia com minha avó Zulmira, muito branca, olhos claros e
cabelo desgrenhado, só que azul. Isso. Minha avó tinha o cabelo azul, pintado
para esconder as madeixas brancas. Minha pobre avozinha sofria calada,
entretida com suas plantinhas que ela cuidava com amor - "minhas
bromélias, meus "dentes-de-leão", "minhas margaridas". No
fundo de suas prováveis suspeitas havia o consolo de se sentir casada, com
família, para a qual D. Celeste não existia.
Minha
avó era culta, falava francês bem ("Cachez votre bonheur!", me dizia
ela que, sem dúvida, escondia a sua "malheur".)
Um
de seus orgulhos era ter cuidado do Manuel Bandeira numa fazenda onde o poeta
tentava a cura da tuberculose: "Despejei muito balde de hemoptises,
coitado"...
As
amantes de antigamente eram quase partes da família, partes ocultas, agregadas ao
sistema sagrado do lar, quase um 'serviço social'.
D.
Celeste me deu um beijo longo, quando saímos da repartição. Meu avô deixou-me
dar uma tragada em seu cigarro e falou para si mesmo: "Me ajudou muito
essa 'criatura'..." Achei a palavra estranha - carinhosa e cruel. D.
Celeste. E esse amor não foi um casinho de colegas não; durou mais de 30 anos -
bodas tristes, cinzentas, bodas de nada.
Os
anos passaram. Eu levava meu avô, já gagá, ao Jockey Club para conversar com os
tratadores seus amigos: "A Garboza corre hoje, Ernani?" Não, seu
Arnaldo, ela já morreu. "Tudo se misturava - passado e presente eram
iguais."
Vovô
já vivia numa cadeira de balanço que ele impulsionava com muita rapidez, quase
violência, como se quisesse voar pela janela afora.
Havia
um grande ódio que o movia: (pasmem) era um ministro, Ary Franco, hoje presídio
no Rio. Ary Franco era do STF quando vetou algum pleito dos funcionários
aposentados... Isso prejudicou meu avô e seus amigos para quem telefonava sem
parar: "Esse demônio diminuiu nossa pensão!" Esse ódio era seu único
assunto no fim da vida, quando contava compulsivamente as notas na carteira
para ver se fora roubado.
Um
dia, sua cadeira parou de balançar e ele ficou calado, imóvel repetindo uma
frase baixinho. Era um endereço. Ele 'conversava' com alguém: "Rua Ana
Nery, casa tal, número tal.. eu sei, você quer que eu vá aí. Mas, e minha
família, Celeste, que que eu faço...?" Minha avó andava pela sala ouvindo
aquela ladainha sem estranheza, arrumando seus bibelôs de faiança, uns anjinhos
de asas, um elefantinho.
Por
amor, por curiosidade perversa, sei lá, um dia resolvi levá-lo ao tal endereço.
Os
cabelos dela agora eram brancos. Não se erguiam como a antiga coroa ruiva.
Esfarripados, caídos, brancos. D. Celeste estava numa mesinha da varanda
recortando revistas com uma tesoura, guardando os recortes numa caixa... Ela
nem estranhou a chegada de vovô. Parecia continuar uma conversa antiga,
interrompida há pouco.
"Veja
só... Lembra do crime do Sacopã? A Marina era amante do Afranio e o tenente
Bandeira matou ele... Agora está na caixinha."
Recortava
notícias e olhava para meu avô com um sorriso orgulhoso.
"Agora
guardo tudo - desde quando eu nasci. Tudo. Olha a manchete: 'Silvia Serafim, a
meretriz assassina'. Ela matou o dono do jornal... Tudo que aconteceu na minha
vida está aqui. Está quase cheia, olha... Esse menino cresceu hein? Seu
xará!"
"E
esse Ary Franco que cortou nossa pensão?... Aqui se faz, aqui se paga,
desgraçado!...
"Olha
esta capa do O Cruzeiro. É a Dana de Teffé, linda. O advogado matou ela! Aqui,
ó, a chegada dos pracinhas... Olha, a Martha Rocha coitada... perdeu..."
Ficaram
um tempo em silêncio... Meu avô sentou ao seu lado, olhar perdido no céu. E
ela, dobrando jornal.
Eu
via os corpos que se amaram, se enroscaram, eu imaginava braços e pernas
enlaçados, a cabeleira ruiva entre seus dedos, os seios chupados, os gritos de
amor, o suor nos corpos, agora tão magros e encanecidos.
"Olha
nós dois aqui, em Caxambu." Ele pegou a foto e seus dedos se tocaram por
um instante.
"É...""Tinha
tango no hotel, lembra? Eu dançava bem..."
"É..."Outra
pausa. Vovô se ergueu, com minha ajuda...
"Já
vou indo..." D. Celeste nem olhou, entretida nos recortes: "Olha
aqui, a Greta Garbo. Vi sua filha uma vez, na rua. Ela é a cara da Greta
Garbo..."
Meu
avô e eu saímos lentamente pelo portãozinho. D. Celeste ainda avisou: "Não
volta tarde..."
Pouco
tempo depois, minha avó morreu. O cabelo azul espalhado no travesseiro.
No
velório, meu avô calado num canto. Falou da gripe espanhola. "Em 1918,
morreu gente como mosca. Eu escapei."
Ele
já não entendia nada, mas seus olhos brilhavam como janelas para um passado
remoto. Toda sua vida passava em alta velocidade. Fitou-me com um sorriso
divertido e amargo e disse, como uma sentença: "Puta que pariu, seu
Arnaldinho..."
Ali
estava o resumo de sua vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário