01
de dezembro de 2012 | N° 17270
CLÁUDIA
LAITANO
O marinheiro e o
camponês
Durante
mais de 30 anos, meu pai trabalhou em uma grande loja de departamentos chamada
Hermes Macedo. Se aquele prédio na esquina da Alberto Bins com a Coronel
Vicente fosse um reino – e para mim era –, meu pai seria o soberano, e eu sua
única princesa.
Loja
de departamentos era aquele negócio com a ambição cosmogônica de contemplar
todas as necessidades de consumo que um crediário é capaz de abarcar. Na HM,
compravam-se calcinhas e geladeiras, bicicletas e relógios, pneus e anáguas,
lanchas e todos os seus acessórios, sofás e passadores de cabelo. Como a
família real morava em apartamento, a Hermes Macedo era meu parque, minha
Disney, meu reino das águas claras.
Ali,
eu podia pular em todos os sofás, testar todos os brinquedos e, mais radical de
todas as aventuras, subir correndo a escada rolante no sentido contrário. Na
Hermes Macedo, iniciei e encerrei minha carreira de modelo infantil cometendo
um ousado strip-tease na passarela, sentei no colo do Papai Noel pela primeira
e última vez – e chorei, acalentei todas as bonecas, pedalei todas as
bicicletas sem nunca sair do lugar.
Tudo
porque meu pai trabalhou quase a vida inteira em um único emprego – e para mim,
na infância, era como se ele tivesse nascido ali e fosse morrer ali também.
(Anos mais tarde, ele acabou morrendo no trabalho, mas não na HM, que já havia
falido, mas no escritório onde se empregou para completar a modesta
aposentadoria que se pagava aos soberanos das lojas de departamentos naquela
época.)
Em
um texto clássico sobre a arte de contar histórias, Walter Benjamin divide a
habilidade de narrar em dois grandes arquétipos: o do marinheiro e o do
camponês. O marinheiro viaja, enfrenta perigos, estende horizontes com o relato
de suas aventuras. O camponês é o depositário da tradição, das narrativas que
tornam um lugar único em relação a todos os outros. O marinheiro é espaço, o
camponês é tempo.
Meu
pai foi o camponês urbano que nunca saiu do mesmo lugar. Se tivesse sido um
piloto da Varig, um capitão da Guarda Costeira, um mascate de tecidos, é
provável que tivesse me ocorrido perguntar mais sobre as coisas que tinha
visto, os personagens exóticos, as paisagens distantes.
Hoje
me arrependo de não ter usado o tempo que tivemos juntos para perguntar mais
sobre a cidade de onde ele nunca saiu, sobre as esquinas que conhecia desde
sempre, sobre as pequenas e grandes intrigas daquele reino aparentemente
indestrutível que se desfez antes mesmo de eu chegar à vida adulta.
Dizem
que os garotos de hoje têm pavor da ideia de trabalhar a vida inteira no mesmo
lugar e que a carreira estável não tem o apelo que tinha nos tempos do meu pai.
E é verdade. Mas o fato é que a jornada aventurosa do marinheiro sempre foi
mais sedutora do que a estabilidade, mesmo quando ser camponês parecia mais sensato.
Eu
mesma, se tivessem me perguntado, talvez respondesse que preferiria visitar
todas as capitais da Ásia a morar sempre na mesma cidade, fazendo a mesma coisa
todos os dias e vendo as semanas virarem meses, e os meses se agruparem em
anos.
Não
foi bem o que aconteceu. Esta semana, comemorei inacreditáveis 25 anos lavrando
metaforicamente o mesmo pedaço de terra, na mesma esquina da Erico com a
Ipiranga onde comecei a trabalhar antes mesmo de decidir ser jornalista. Sou,
como meu pai, uma camponesa.
O
que marinheiros e camponeses acabam percebendo depois de algum tempo é que há
sempre algo novo a se descobrir na paisagem de todos os dias, assim como algo
que se repete naqueles lugares onde nunca estivemos antes.
A
única aventura realmente inesgotável talvez seja aquela de poder fazer o que se
gosta. Assim na terra como no mar.
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