sexta-feira, 12 de outubro de 2007



A criança que eu não fui
Fátima Irene Pinto

A criança que eu não fui aflora agora, após quase meio século de vida.

Eu acreditei que pudesse abafá-la para todo o sempre e nunca levei a sério todos os seus veementes apelos para ressurgir e manifestar-se.

Ocorre que ultimamente ando esbarrando nela a todo instante, do jeitinho que a deixei há quarenta e tantos anos atrás: extremamente tímida, sobressaltada, sem defesas para um mundo que lhe parecia por demais hostil e complicado.

De família numerosa, meus assoberbados pais não tinham tempo para entender a minha interna tragédia, tampouco para resgatarem-me dos dramas que a minha criança resolveu sozinha e resolveu completamente errado.

Incorporei todos os rótulos que me deram nas minhas primeiras tentativas de convivência entre os humanos: desajeitada, limitada, mela-festa, esquisita.

Então a minha criança entendeu que para merecer fazer parte da vida e receber um mínimo de carinho e aceitação, era preciso fazer coisas heróicas e grandiosas. Em cima desta idéia pautei toda a minha existência.

Tenho que dar um salto aqui - não interessa narrar os meus grandiosos e heróicos feitos - mas é preciso ressaltar sim, os desumanos sacrifícios despendidos nesta empreitada e para onde eles me levaram: depressões profundas e síndrome do pânico cujas sequelas ainda hoje se fazem sentir.

As vezes me pergunto porque o 'Supremo' não intercedeu por mim naquela época, mandando-me uma angélica criatura para lembrar-me que nada daquilo era preciso e que a despeito das minhas esquisitices, eu era merecedora de amor respeito e aceitação?

Esta narrativa fica pela metade, pois só agora começo a dar-me conta do tamanho e da gravidade do equívoco. Só agora estou disposta a romper a muralha de aço entre o meu eu adulto (e mal resolvido) e aquela criança que não me permiti ser e que agora explode à minha revelia, não aceitando mais o porão escuro onde a trancafiei por tantos anos.

Espero que haja tempo para resgatá-la e deixá-la ser feliz pela primeira vez na vida, sem que nada ela tenha que fazer de sobre-humano, de heróico ou grandioso, de notório ou relevante.

Perdoa-me, minha criança! Eu joguei duro demais com você por ignorância. Liberto-a agora! Esteja feliz! Esteja em paz!

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