sábado, 27 de outubro de 2007



28 de outubro de 2007 |
N° 15401 - Luis Fernando Verissimo

O tom

Quem procuraria outra mulher tendo uma como ela - corpo de vinte, rosto de trinta - em casa?

Apavorada com a perspectiva de envelhecer e o marido trocá-la por uma mais moça, fez plástica atrás de plástica. Resultado: tem cinqüenta anos mas um corpo de vinte e um rosto de trinta, se você não olhar muito de perto.

Alisou as rugas, tirou daqui, enxertou ali, levantou acolá - o acolá é sempre o primeiro a cair - e conseguiu: não envelheceu. Mas no outro dia contou que o marido a trocara por outra.

Estava inconsolável, só não podia chorar para não desmanchar a maquiagem. Tentaram consolá-la assim mesmo, chamando o marido de tudo. Inclusive de cego, pois quem procuraria outra mulher tendo uma como ela - corpo de vinte, rosto de trinta - em casa?

Os homens não tinham jeito. Em muitos deles, amadurecer era uma forma de voltar à adolescência. Iam em busca dos hormônios perdidos e só encontravam o ridículo.

Não me façam chorar, não me façam chorar - pedia ela.

As outras mulheres começaram a desenvolver teses sobre o que leva homens mais velhos a procurar mulheres mais moças. Pânico sexual, antes de mais nada.

Descontadas, claro, as falhas naturais do caráter masculino, que também se acentuam com a idade. Mas ela que esperasse. Cedo ou tarde, ele se cansaria da mulher mais moça, ou ela se cansaria dele e...

- A outra não é mais moça - interrompeu ela. - É mais velha do que eu!

Abriu-se uma clareira de espanto. O quê? Mais velha?!

E ela contou que a outra nunca fizera plástica, que a outra nem pintava os cabelos. Era uma senhora grisalha, matronal, exatamente do tipo que ele esperara em vão que ela ficasse, segundo ele mesmo dissera.

Sim, porque ela fora pedir satisfação, disposta, inclusive, a bater na outra. Não só não batera como acabara ouvindo conselhos da outra, num tom maternal, sobre como envelhecer com naturalidade.

O que mais doera fora o tom maternal.

A posteridade

Ninguém que eu saiba ainda teve a idéia de reunir num texto todas as versões de Don Juan jamais feitas, de Mozart a George Bernard Shaw.

Poderia ser uma espécie de congresso, onde a discussão sobre quem é o Don Juan verdadeiro seria animada, pois em cada versão ele tem uma personalidade diferente e representa outra coisa.

A posteridade, já disse alguém, não é um lugar seguro. A de outros personagens da ficção e da História também depende da versão que pega.

Na sua peça Santa Joana, por exemplo, Shaw descreve Gilles de Laval, "seigneur" de Rai, um lorde da Bretanha que chegou a marechal da França pelas suas virtudes militares e estava com Joana D´Arc em Orleans, como um jovem elegante e seguro de si com uma extravagante barbicha encaracolada tingida de azul, e durante toda a peça o identifica como Bluebeard.

Sabe-se que depois de encerrada sua carreira militar Gilles transformou-se num patrono das artes e seria lembrado como tal se não fossem os persistentes rumores de que gostava de fazer coisas estranhas com meninos, inclusive matá-los.

Por esse detalhe, hoje ele é lembrado não como um exemplar grão-senhor da época mas como o inspirador da história do Barbazul.

A própria Joana D´Arc é heroína ou vilã, dependendo dos detalhes. Shakespeare, do ponto de vista do outro lado do canal, retratou a corajosa donzela dos franceses como uma aberração maligna na sua peça sobre Henrique VI.

E, afinal, ela foi queimada como bruxa e só canonizada anos depois, e parece que os ingleses ainda não se convenceram.

A posteridade, às vezes, esquece o detalhe, às vezes só conserva o detalhe. Por causa de uma única fotografia, é possível que, no futuro, quando falarem em Albert Einstein, digam:

- Albert Einstein, Albert Einstein...

Não era aquele velhinho com a língua de fora?

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