quinta-feira, 18 de outubro de 2007



18 de outubro de 2007
N° 15392 - Luis Fernando Verissimo


Rude e doloroso

Minha posição quanto à conveniência ou não de se unificar o português falado no mundo é um destemido "não sei".

Talvez não valha o trabalho que dará para mudar regras e hábitos - sem falar em dicionários - e pode-se prever que as mudanças, se vierem, levarão tempo para "pegar".

Mas os escritores em português têm um interesse menos acadêmico do que prático na unificação do seu idioma, que aumentaria o mercado em potencial para seus livros.

O "rude e doloroso" idioma de Bilac é falado por mais gente do que o francês, mas temos razões para nos queixar da sua relativa obscuridade.

Ao contrário da Espanha, que perdeu seu império americano mas deixou um imenso mercado para o García Márquez e o Vargas Llosa, Portugal não foi muito pródigo com a sua língua.

Os navegadores, catequizadores e comerciantes portugueses largaram palavras avulsas pelos caminhos da sua exploração do mundo, como pepitas raras. (Até hoje na Costa Ocidental da África usam a palavra "dash" para gorjeta. Vem do português "deixar", como em "Vou deixar uns trocados para você, ó mameluco!".

No Japão, o prato de camarão com legumes fritos chamado "tempura" tem este nome por causa dos portugueses que só comiam peixe durante os "Quattuor Tempora", ou Quatro Tempos, de cinzas e contrição, do ano litúrgico.

O "mandarim" chinês vem de "mandar" mesmo, combinado com o sânscrito "mantri", ou conselheiro.

Algumas palavras portuguesas andaram pelo mundo e voltaram com seu sentido mudado. "Casta", substantivo, camada social, vem do português "casta" adjetivo. "Fetiche" começou a vida como feitiço. E o "joss" do chinês pídgin, significando ídolo, é uma corruptela do "Deus" chiado dos portugueses).

Mas não deixaram uma língua universal como o espanhol, que não é o mesmo para todos os hispanofônicos mas tem menos diferenças do que as que separam um português dos outros.

E, mesmo com a unificação da gramática e do vocabulário, restaria a questão da pronúncia. Certa vez fui entrevistado por um casal que apresentava o noticiário numa TV do Porto. Meu pânico começou na primeira pergunta, que não entendi.

Adivinhei que era sobre a recepção à literatura portuguesa no Brasil e falei no Saramago. A segunda pergunta era parecida com a primeira, só menos inteligível.

Fui de Saramago outra vez. A terceira e a quarta, a mesma coisa. Não sei se era para ser uma entrevista rápida mesmo ou se eles desistiram, desconfiando da minha sanidade mental, e não perguntaram mais nada. Pelo menos o "Obrigado" eu entendi.

A dicção do casal era especialmente difícil, e a culpa por não entendê-los era minha, mas o português de Portugal muitas vezes nos lembra a descrição do Bilac. Se bem que no caso a rudeza é nossa, da colônia.

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