sábado, 20 de outubro de 2007



21 de outubro de 2007
N° 15395 - Moacyr Scliar


Um tempo para as nossas fantasias

O relógio pode ser uma coisa estressante. Mas, com um pouco de imaginação, ele nos ajuda a fabricar fantasias

No último domingo, como todos os gaúchos, adiantei uma hora o meu relógio. Mas não precisaria ser uma hora: 48 minutos bastariam. Isso porque o meu relógio está, e já há bastante tempo, adiantado 12 minutos.

É um bom relógio, um Casio barato, que cumpre diligentemente suas funções: tão bem, quero crer, quanto o Rolex de Luciano Huck, arrebatado ao apresentador num assalto, e com a óbvia vantagem de que assaltante nenhum se incomodaria por causa de um objeto tão modesto.

Mas, perguntarão vocês, por que o relógio está adiantado? Bem, porque tempos atrás, e justamente numa dessas trocas de horário, eu sem querer o adiantei e nunca corrigi o equívoco: o relógio continua adiantado.

E, pelo que tenho observado, não sou o único. Há pessoas que gostam de adiantar o relógio. Pergunta: por quê? Qual a motivação para essa insólita atitude?

Na verdade, não sei bem. Mas tenho uma explicação, resultante da vida de correria que todos levamos. Quando olhamos para um relógio que está adiantado (e estamos sempre olhando o relógio), a nossa primeira reação é de susto:

Deus, já são nove horas! Depois vem um pequeno alívio: não, não são nove horas, ainda faltam 12 minutos, é o meu relógio que está adiantado.

Ou seja: relógio adiantado serve para isso, para dar-nos a sensação, a ilusão de que ainda temos tempo. Pouco tempo, mas algum tempo de qualquer modo.

Diante da vida, somos como a criança a quem a mãe acorda para ir ao colégio e que, sonolenta, implora: "Só mais cinco minutinhos, mãe."

É o que sempre estamos pedindo a este implacável algoz que é o tempo: mais cinco minutinhos, mais 12 minutinhos, mais uns diazinhos, mais uma semaninha, mais um aninho.

Somos postergadores crônicos, dispostos a adiar o mais possível os prazos que precisamos cumprir. Amanhã eu decido que vestibular vou fazer. Amanhã decido se vou casar contigo. Amanhã decido o que fazer da vida, agora que estou desempregado.

Claro, no horário de verão, não é bem isso que acontece. No horário de verão não estamos dando tempo ao tempo, estamos emprestando tempo ao tempo.

O horário de verão faz com que, naquela noite, durmamos uma hora menos (deve ser uma das razões pelas quais a mudança é agendada para o fim de semana).

E é um empréstimo que cobraremos: quando terminar o verão, recuperaremos essa hora, esse empréstimo. Infelizmente sem juros: o tempo não aceita, como os bancos, depósito a prazo fixo, ainda que tempo, como dizem os americanos, seja dinheiro.

Empréstimo similar fazemos quando viajamos para o Exterior, em função de fuso horário. Indo para a Europa, por exemplo, perdemos algumas horas de sono, as quais recuperamos quando voltamos. Muita gente já teve a idéia de fazer essa viagem, que nos dá horas adicionais, de forma constante, pelo resto da vida.

Passaríamos a morar num avião, com todos os problemas que isso acarreta, mas o tempo nunca passaria, ao contrário, cada vez nos sobrariam mais horas, e mais dias e mais anos. A imortalidade de que fala o lema da ABL deve ser uma coisa parecida.

As pessoas que adiantam o relógio são felizes. Foi a invenção deste providencial objeto que permitiu a ilusão. No tempo da ampulheta, do relógio de areia (ou de água), não havia como fazer qualquer adiantamento.

E isso mostra que a vida tem suas compensações. O relógio pode ser até uma coisa estressante, um instrumento de tortura.

Mas, com um pouco de imaginação, ele nos ajuda a fabricar fantasias. E fantasia é uma coisa importante. A cada dia deveríamos separar um intervalo de tempo para as nossas fantasias. Sugiro algo como 12 minutos.

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