sexta-feira, 26 de outubro de 2007


CARLOS HEITOR CONY

Rodin, o Michelangelo dos Pobres

Se Rodin tivesse vivido na Renascença, criaria melhor. Mas viveu com o tédio da burguesia

ASSIM COMO chamaram Puccini de "o Lehár dos ricos", o escultor francês Auguste Rodin pode ser chamado de "o Michelangelo dos pobres". Tanto um como outro recebem restrições dos entendidos, mas, curiosamente, são mais amados do que os modelos originais.

Puccini começou pelo alto, mas sua tendência era popularizar-se, compor para a plebe, com a gloriosa exceção de "Turandot".
Rodin fez trajetória oposta: da plebe chegou à elite. Muitos o acusam de ser uma tentativa de cópia do gênio florentino. Respeitadas as épocas, há influências poderosas de um sobre o outro.

O primeiro viveu na Renascença, no apogeu do retorno ao classicismo: quando viu pela primeira vez o famoso torso do Belvedere, Michelangelo descobriu que tudo o que fizera, até então, nada valia.

O mesmo aconteceria com Rodin: ao descobrir Michelangelo repudiou o que antes aprendera com Carpeaux e, mais tarde, com Carrier-Beleuse, em cujo estúdio fizera sua iniciação. Ele próprio, imitando o modelo renascentista, faria inúmeras cópias de um torso bastante aproximado ao de Belvedere.

Com os anos, Rodin permaneceu fiel às paixões iniciais, mas adquiriu outras. E, acima de tudo, paixão pelas mulheres. Seduziu várias ao mesmo tempo, e pelo menos num caso, teria provocado uma tragédia. Relacionando-se com suas modelos e alunas, levou uma delas à loucura.

Camille Claudel fora sua assistente, aluna, modelo e amante. Passaria os últimos 30 anos de sua vida num hospício. Como os deuses, os gênios enlouquecem aqueles que querem perder.

Filho de operários, chegou a pensar em ser frade, foi um jovem torturado e deprimido pelo fato de ser pobre. Quando se dedicou à escultura, teve um início medíocre, com suas obras recusadas nos salões e ignoradas pelos potenciais compradores. Até que veio a viagem à Itália, a descoberta de Donatello, Dante e Michelangelo.

A partir daí, não mais lhe faltaram temas e inspiração. Extraordinariamente dotado para a forma, fiel às linhas essenciais do corpo humano, chegou a ser acusado de usar, como modelo, um corpo vivo, que ele teria moldado com gesso para obter a fôrma que receberia o bronze: um ótimo roteiro para filme com Vincent Price. Só assim se explicaria a minúcia dos detalhes e a exatidão anatômica.

A lenda o acompanhou durante algum tempo, a princípio como condenação, mais tarde como exaltação.

Se Rodin tivesse vivido na Renascença, criaria menos e melhor. Teria encontrado um mecenas na pessoa de um Médici ou de um Giuliano della Rovere, que se tornou papa. Ele viveu sua fase mais fértil num final do século em que a burguesia, cem anos depois da Revolução Francesa, atingia seu instante de esplendor e tédio.

Teve de fazer bustos, dois deles criaram fama: o de Victor Hugo, que provocou escândalo; e o de Balzac, também inacabado como a "Porta do Inferno", um trabalho que muitos consideram sua obra-prima.

Não deixa de ser curioso que Rodin tenha imortalizado em bronze os dois maiores romancistas da burguesia francesa que chegava ao poder ao longo do século 19.

Por falar em burgueses, outra de suas obras mais valorizadas são "Os Burgueses de Calais", um episódio da Guerra dos Cem Anos, que provocou complicada briga entre o artista e o prefeito da cidade.

O grupo dos seis heróis (que durante algum tempo viraram anti-heróis e depois voltaram a ser heróis) parecia trabalho superior à capacidade de um só artista. Surgiria a lenda de que Rodin explorava o trabalho de seus assistentes -uma acusação comum a criadores de obra extensa.

Desde a Renascença o mundo não vira um artista como ele, tendo contra si a assombrosa facilidade de criar as linhas e a luz do corpo humano em movimento. Um movimento que capta extraordinariamente em "O Beijo" e "Primavera Eterna" -para ficar em duas das mais conhecidas obras.

Mas há igualmente um movimento misterioso em "O Pensador". A mão do homem que pensa é o núcleo da estátua, ponto de apoio não apenas do rosto, mas do conjunto.

Nada de admirar que tenha se tornado um dos artistas mais reproduzidos da história. Até mesmo em falsificações e cópias de duvidoso gosto.

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