sábado, 27 de outubro de 2007



27 de outubro de 2007
N° 15400 - Cláudia Laitano


Dívida

Nasci em uma casa sem livros.

Ou quase. Crescemos, eu e meus irmãos, abastecidos por todas as enciclopédias em voga nos anos 70 - Barsa, Universo, Grandes Personagens da Nossa História - mas com poucos livros de ficção. Frei Caneca, Maria Quitéria e Tiradentes ocuparam durante algum tempo o lugar que, por direito, deveria ter sido de criaturas menos assoberbadas por fatos relevantes e deveres cívicos.

(Quantas horas não passei olhando aquela imagem do Tiradentes esquartejado, do quadro de Pedro Américo, entre o horror e o fascínio mórbido? )

Naquela época, mesmo os pais que não tinham o hábito de ler, como os meus, preocupavam-se em ter material suficiente para as "pesquisas" das crianças, por isso as enciclopédias - que, além de tudo, conferiam uma certa sobriedade à estante da sala.

Com a internet, isso obviamente perdeu o sentido, e as crianças de hoje, suponho, crescem sem saber quem é a Maria Quitéria e sem conviver com o Tiradentes fatiado.

A importância de ler e contar histórias para os filhos, por outro lado, virou hoje quase um senso comum. Com menos filhos para cuidar e mais informações genéricas sobre psicologia, pais e mães de classe média, mesmo sem muito entusiasmo pela literatura, costumam ter o hábito de ler e comprar livros para as crianças.

Meu palpite, meio lamentoso e nada científico, é que as crianças dos anos 70, as primeiras a crescerem com a televisão, caíram em um brete de ausência de fantasia: não pegaram o velho hábito pré-TV de ouvir histórias à noite e perderam a tendência recente, pós-diminuição das famílias, de transformar o momento da leitura em uma oportunidade de convivência entre pais e filhos.

Quem nasce em uma casa sem o hábito da leitura precisa trilhar um caminho um pouco mais pedregoso rumo aos livros. Com sorte, encontrará um professor que lhe desperte o interesse, ou mesmo um amigo, um vizinho, um tio com vocação para as letras.

Mas se faltar professor, amigo, vizinho, parente distante, ainda assim é possível descobrir os livros, simplesmente chegando perto, manuseando, cheirando, olhando a capa e as figurinhas - ou seja, tendo acesso a uma biblioteca.

Foi o que aconteceu comigo, que não tinha livros em casa, mas (olha a sorte) morava ao lado da Biblioteca Pública. Foi graças a uma biblioteca que Emília, Pedrinho e Hércules entraram na minha vida, e junto com eles o hábito da leitura.

Minha gratidão àquela biblioteca e a todas as outras que eu freqüentei é do tamanho da dívida que eu tenho com os livros - que me ensinaram, e continuam ensinando, a ler e a escrever, a pensar e a sentir, retroalimentando a sede pelo oceano de possibilidades que uma estante de livros oferece.

A dívida com as bibliotecas que nos inventaram como leitores não se paga, mas pode ser amortizada. Durante a Feira, o estande da RBS na Praça da Alfândega estará recebendo doações de livros - que serão encaminhadas a cinco instituições, duas de Porto Alegre e três do Interior, indicadas pelos candidatos ao prêmio Fato Literário 2007. (Confira na página 7 do caderno Cultura o trabalho de cada uma delas.)

Seja co-autor de uma história real: ajude um leitor a encontrar o livro que pode mudar o enredo da sua vida. Aconteceu comigo, acontece todos os dias.

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