quarta-feira, 17 de outubro de 2007



17 de outubro de 2007
N° 15391 - David Coimbra


O homem que inventou o bunda-mole

Inteligente era o cara que inventou os aros da roda da bicicleta. Analise-os bem. São cabos delgados e flexíveis, da espessura de canudos de refrigerante.

Se você colhe um único deles e o verga mesmo com suas mãos nuas e delicadas de pianista, o aro cede facilmente e é capaz de se quebrar feito um palitinho de queijo. Mas, no conjunto, os aros sustentam a roda da bicicleta e, em última análise, a bicicleta inteira com você e seus 94 quilos em cima. Que idéia engenhosa, a dos aros da bicicleta!

O estribo também. A Europa só foi adotar o estribo nos anos 1.000. Antes disso, os cavaleiros não tinham onde apoiar o pé para se firmar sobre a sela, era-lhes impossível lutar com destreza equilibrando-se no alto da montaria.

Os gregos nem sela usavam. Tanto que Xenofonte, ao ver que os persas sobrepunham panos no lombo do cavalo para montar com maior conforto, chamou-os de bundas moles. Um momento histórico da Humanidade.

Pela primeira vez, alguém chamava alguém de bunda-mole. E com coerente justificativa: as bundas dos persas deviam ser moles, caso contrário eles não precisariam de paninhos ao montar.

Quer dizer: se os gregos antigos não tiveram tino para bolar o estribo, ao menos coube a eles, através de Xenofonte, a criação desse xingamento genial, bunda-mole.

É muito bom chamar um bunda-mole de bunda-mole, porque a natureza de um bunda-mole só pode ser expressada inteiramente em sua bunda-molice com esse adjetivo de 25 séculos de idade: bunda-mole. Agora mesmo estou vendo um bunda-mole passar. Ó. Baita bunda-mole.

Inventos simples, porém geniais, é a isso que me refiro.

Outro invento coruscante: a perspectiva na pintura. O ser humano pinta e desenha há 40 mil anos, antes mesmo da História, ou seja: antes da escrita e da agricultura, antes da própria Civilização.

Mas, desde a época em que reproduzíamos cenas de caçadas nas cavernas, nossos desenhos eram rígidos, feitos como se toda a cena retratada estivesse no mesmo plano, sem profundidade.

Até que o italiano Giotto inventou a perspectiva. Descobriu que podia pintar em três dimensões, desde que as figuras fossem desenhadas em tamanhos diferentes e em planos diferentes. O chamado escorço.

Desta forma, Giotto mudou a história da Arte. Mas isso aconteceu no século 13. Algo tão óbvio só foi descoberto depois de milênios de Civilização.

A partir de então, os artistas de todo o Ocidente ficaram encantados com as perspectivas que a perspectiva lhes oferecia. No século 15, outro italiano, Paolo Uccello, passava dias inteiros experimentando a pintura em perspectiva.

Certa noite, já tarde da madrugada, quando sua estremunhada mulher foi lhe chamar para a cama, Uccello não respondeu. Prosseguiu de cabeça baixa, rabiscando e rabiscando, a repetir, com um sorriso a lhe iluminar o rosto italiano:

- Quão doce é a perspectiva!

É a frase que sempre uso para gremistas e colorados, quando me vêm falar sobre a relação de seus times com a imprensa, gremistas a esbravejar que a imprensa é vermelha, colorados a reclamar que os jornalistas são gremistas. Explico-lhes então que tudo depende da perspectiva.

O torcedor vê tudo com os olhos dardejantes do apaixonado, e com o apaixonado não é possível discussão racional. Tudo depende da perspectiva em que o coloca o coração. Só que, no caso, às vezes a perspectiva não é tão doce como a que embalava as noites renascentistas de Paolo Uccello.

Essa história da perspectiva e de Uccello eu a li em um livro que recomendo entusiasmado. Trata-se de A História da Arte, do professor Gombrich, um vienense que lecionava na Grã-Bretanha.

Era tão bom, o professor Gombrich, e tão famoso, e tão benquisto pelos alunos, que a rainha da Inglaterra conferiu-lhe o título de Sir.

É talvez o melhor livro de história da arte que já li, com um texto escorreito e elegante e ilustrações preciosas. Um volume alentado, mais de 700 páginas, mas tão bem escrito que você o engole de um fôlego só. Como se fosse um gibi.

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