segunda-feira, 22 de outubro de 2007


MOACYR SCLIAR

A paixão pelo livro

Acho que ele não conhecia a minha frase, porque o livro de bronze foi um engano, não é mesmo, caro Drummond?

Livro que integra escultura de Drummond e Quintana é furtado em Porto Alegre. Um livro de bronze de três quilos que integra uma escultura em homenagem aos poetas Mário Quintana (1906-1994) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) exibida na praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, foi furtado.

O crime ocorreu há cerca de duas semanas -a Polícia Civil não sabe a data exata. De autoria dos artistas Xico Stockinger e Eloísa Tregnago, a peça foi inaugurada em outubro de 2001, por encomenda da Câmara Riograndense do Livro. Os poetas são representados em tamanho real.

O gaúcho Quintana está sentado e olhando para Drummond, que é representado em pé, com um livro pregado em uma de suas mãos.

Foi este o pedaço de escultura levado. O quilo do bronze é vendido por cerca de R$ 5 em lojas e depósitos de sucata de Porto Alegre.

Quem furtou o livro teve cuidado, tempo e habilidade para não danificar o restante da escultura: as mãos de Drummond permanecem intactas, sem sinais aparentes de que tenham sido forçadas. Cotidiano, 18 de outubro

- DESCULPE, DRUMMOND , tu sabes que eu sou meio distraído, como os poetas costumam ser, mas, por acaso, ontem, não tinhas um livro na mão? - Tinha, Mário, tinha um livro na mão. Só que este livro foi roubado, Mário.

- Roubado, Drummond? Que coisa. Roubaram um livro da tua mão. E quem foi que roubou, Drummond?

- Não conheço a pessoa. Mas até que foi gentil. Não me machucou, não me agrediu. Simplesmente levou o livro e se foi.

- Quem sabe é um leitor teu, Drummond. Leitores, às vezes, fazem o possível e o impossível para obter as obras de seus autores preferidos. Claro, o cara podia ter esperado a Feira do Livro, que abre esta semana, mas vai ver tinha pressa em te ler e estava sem dinheiro.

- Pode ser, Mário. Mas acho que o nosso amigo terá uma decepção. O livro não tinha nada escrito. Era um livro de bronze.

- De bronze, Drummond? Que interessante. Tu sabes que uma vez quiseram me homenagear fazendo o meu busto em bronze.

Eu disse que um engano em bronze era um engano eterno. Acho que o leitor não conhecia a minha frase, porque o livro de bronze foi para ele um engano, não é mesmo, caro Drummond?

- Não sei, Mário. Não sei. Você sabe que o quilo do bronze é vendido por cerca de R$ 5 em lojas e depósitos de sucata. Como este livro tinha 3 quilos, o nosso amigo vai faturar R$ 15. Tem muito livro que não chega a esse preço. Ou seja: se foi engano, pelo menos foi um engano lucrativo.

- Mas de qualquer maneira terá uma decepção. Se fosse um livro de verdade, ele, pelo menos, leria um poema teu. Aliás, Drummond, uma curiosidade: se tivessem te pedido um poema, um único poema, para o livro de bronze, qual seria?

- Não sei. Acho que faria algo inédito. Que tal este, Mário? "No meio do caminho tinha um livro de bronze/ tinha um livro de bronze no meio do caminho..."

- Muito bom, Drummond. E eu completaria: "Todos esses que aí estão/ atravancando o meu caminho/ eles passarão..." - "Eu passarinho", Mário? - É, Drummond. Eu, passarinho. Voando, voando. E levando comigo um livro de bronze.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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