sábado, 27 de outubro de 2007



27 de outubro de 2007
N° 15400 - A Cena Médica | Moacyr Scliar


Radicais livres: a realidade e a metáfora

Radicais livres não apenas existem no organismo humano, como servem para uma metáfora para outros radicais livres, aqueles que atuam no organismo social.

Nosso corpo é formado de células, as células são formadas de moléculas, as moléculas são formadas de átomos, e o átomo é um sistema solar em miniatura, minúsculas partículas, chamadas elétrons, girando em torno a um núcleo.

Os átomos partilham elétrons com outros átomos. Se por acaso isso deixa de acontecer, se um átomo se vê privado do elétron que ele partilhava com outro átomo, torna-se um radical livre, que é, a rigor, um átomo carente.

E, como os seres humanos carentes, altamente instável, imediatamente, trata de arranjar um outro elétron num átomo vizinho. Esse, sem o elétron, torna-se por sua vez um radical livre, de modo que estamos diante de um processo em cadeia.

Isso, no corpo humano. No organismo social, espera-se que as pessoas, como os átomos, partilhem com outras pessoas os elétrons representados por costumes, crenças, práticas. Mas existem pessoas - sobretudo jovens - que, por várias razões estão excluídas, ou excluem-se, do condomínio cultural.

O resultado, como no caso dos átomos, é carência. Mas essa carência não é vista por quem a tem como uma coisa negativa. Ao contrário, passa a ser encarada como um nobre desejo de alterar uma ordem social, que é vista como injusta, desumana mesmo.

No corpo, o radical livre tem efeitos funestos. Ele oxida o organismo. A oxidação (e a ferrugem é um exemplo disso) é destrutiva, pode acabar com uma estrutura de ferro e pode lesar seriamente os órgãos. A oxidação tem sido envolvida numa grande variedade de doenças, a começar pelo câncer.

Por causa disso, vários tratamentos antioxidantes têm sido propostos, mas não há consenso quanto à sua eficácia (ainda que se reconheça os benefícios de uma dieta rica em frutas e verduras, ou seja, em antioxidantes).

No organismo social, o radical livre não se vê como causa de doença. Ao contrário, doença para ele é a miséria, a desigualdade, a exclusão.

Que, por sua vez, resultam da opressão, do domínio de ricos sobre pobres, apoiado numa férrea estrutura que data de séculos, de milênios. Essa estrutura têm de ser corroída, tem de vir abaixo para que uma nova estrutura seja construída.

O processo de corrosão pode começar a partir de pequenos focos de rebelião (e a doutrina do "foco revolucionário" foi criada por ninguém menos do que o médico Che Guevara) e culminará com o triunfo da revolução. O radical livre não deixa por menos: tudo deve ser mudado.

Na natureza, o radical livre faz parte de um contínuo processo de renovação. E no corpo humano? Bem, aí depende do ponto de vista. Para a pessoa que é dona desse corpo, a oxidação é uma catástrofe que tem de ser evitada.

Da mesma forma, para as pessoas que vêem o corpo social como uma estrutura normal, que não querem mudá-lo ou querem mudá-lo de forma gradual (reformas, não revolução), o radical, quando livre, é um perigo.

O exército boliviano não hesitou em liquidar Che Guevara, que assim deixou de ser um radical livre para se tornar uma lenda. Mas, em nosso corpo, os radicais não são lenda, são realidade.

Independentemente de nossas concepções políticas, independentemente da maneira como vemos Che Guevara (herói para uns, bandido para outros, como mostraram os debates na Rádio Gaúcha e na TVCOM), temos de preservar nossa saúde.

Comam frutas e verduras, portanto, cantando ou não o hino da Internacional Comunista, aquele que fala da batalha final. A ser vencida pelos radicais, claro. Que serão livres pelo menos até essa batalha, até a tomada do poder. Depois, é outro papo.

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