terça-feira, 30 de outubro de 2007



30 de outubro de 2007
N° 15403 - Moacyr Scliar


Livros e intolerância

Hoje à noite, na Reitoria da UFRGS, estarei dividindo o palco desta fantástica maratona cultural que é o Fronteiras do Pensamento com a escritora norueguesa Asne Seierstad.

Estou grafando o nome dela (que, informaram-me, pronuncia-se "Osne") de forma errada: falta um sinal gráfico, uma espécie de bolinha, em cima do A, e enquanto eu não tiver um teclado norueguês o erro será inevitável.

Mas é um alívio, para quem, como nós, tem de lidar com tantos acentos. Já imaginaram se, além da crase e do circunflexo, tivéssemos de colocar também bolinhas sobre as letras? Passaríamos o resto de nossas vidas às voltas com essa tarefa.

Asne Seierstad é autora de um dos livros mais comentados na atualidade, O Livreiro de Cabul (no Brasil, lançado pela editora Record), resultado de um período de três meses em que foi hóspede de uma família afegã, cujo chefe (e era chefe mesmo), o livreiro Sultan Khan, tinha duas esposas e cinco filhos. Baseada nesta convivência, Asne escreveu uma história em que imaginação se mistura com realidade.

Transformar pessoas reais em personagens de ficção não é um empreendimento isento de problemas, como o sabem os veteranos escritores, e no caso não foi diferente: o livreiro ficou indignado, processou a autora e acabou, ele próprio, escrevendo sua versão sobre o acontecido.

De qualquer maneira O Livreiro de Cabul é um best-seller, em primeiro lugar porque tem como cenário uma parte "interessante" do mundo. Tudo que diz respeito a Afeganistão, Iraque, Irã, atrai a atenção: são áreas de conflito, e conflito não raro sangrento.

Os chineses têm um ditado que diz algo como "Deus nos livre de viver em épocas interessantes", e isto porque épocas interessantes (ou lugares interessantes) em geral se traduzem em milhares ou milhões de vítimas.

Ficção e subjetividade à parte, o livro provavelmente expressa o olhar ocidental sobre sociedades tradicionais e fundamentalistas.

E o resultado, como sabemos, é espanto, seguido de desgosto e de revolta, sobretudo por causa da condição da mulher nessa cultura, uma condição que tem na "burca", aquele vestido que é uma verdadeira barraca fechada, o seu símbolo maior. A liberação da mulher não é uma questão cultural, é uma questão de direitos humanos.

No Brasil também temos uma história de discriminação, de opressão e de extermínio, coisa da qual índios e negros podem dar testemunho. Mas avançamos no caminho da democracia; temos o direito, e o dever, de exigir que outras sociedades façam o mesmo.

O livreiro de Cabul retratado no livro de Asne Seierstad é, sob muitos aspectos, uma figura excepcional: em parte por causa de sua profissão, mas certamente também por uma opção pessoal, fez o que pôde, na vigência de regimes repressivos, para preservar e difundir a cultura dos livros.

Cultura e informação são fundamentais para as pessoas. Como fundamental é a igualdade entre homens e mulheres.

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