MIGUEL SROUGI
Médicos inaptos: algozes ou
vítimas?
Mais importante do que abrir
faculdades é aumentar as vagas para residência. Novos médicos são vítimas de um
enredo perverso
Os últimos dias não foram de
felicidade para os brasileiros. Entre outros motivos, descobriram que 54,5% dos
médicos recém-formados da nação são inaptos para a profissão.
Não fiquei surpreso com o número
e com a indignação. Afinal, lideranças e educadores médicos já conheciam a
indecência e, impotentes, nunca conseguiram eliminá-la. Sem tergiversar, julgo
que profissionais inaptos devem ser impedidos de exercer a profissão e que uma
legislação impondo um exame de capacitação dos novos médicos já deveria ter
sido promulgada.
Contudo, não posso deixar de
expressar certa angústia quando dirijo um olhar a esse grupo. Confesso que
nunca me deparei com um médico recém-formado que não acalentasse o sonho de se
tornar um profissional respeitado. Se isso não se concretiza, suspeito que
outras razões produzem o descompasso. Entre elas, a mistura de uma sociedade
complacente e governantes incompetentes.
Como ignorar a influência
negativa da sociedade, que se rejubila com a abertura de novas escolas médicas,
iludida pela ideia de que estão sendo criadas maiores oportunidades para seus
jovens? Cedendo a esses apelos e à pressão de empresários oportunistas, o
governo federal autorizou, entre 2000 e 2012, a abertura de 98 novas
faculdades, perfazendo um total de 198 escolas no país; nos Estados Unidos,
habitado por 314,3 milhões de pessoas, existem 137 instituições similares.
Numa nação de dimensões continentais
e insuportável desigualdade, seria racional que as novas escolas médicas fossem
acomodadas em regiões remotas do Brasil. Contudo, 70% delas foram instaladas na
região sudeste, rica e congestionada, e 74% são de natureza privada, cobrando
taxas exorbitantes de alunos.
Contrariando as leis vigentes, a
maioria desses centros não dispõe de instalações hospitalares adaptadas para o
ensino e carecem de corpo docente qualificado. Isso indica que o processo foi
norteado por interesses políticos menores e pelo anseio do lucro desmedido e
predador.
Agravando esse cenário,
autoridades federais têm dado demonstrações adicionais de inconsequência e de
tolerância suspeita. Uma comissão especial do MEC presidida pelo professor Adib
Jatene descredenciou, há um ano, algumas escolas médicas, pela baixa qualidade
de ensino. De forma misteriosa e inexplicável, a Comissão Nacional de Educação
cancelou, em fevereiro passado, a ação corretiva adotada. Resolução nefasta
para a sociedade brasileira e auspiciosa para os mesmos predadores da nação.
Nossa presidente anunciou sua
disposição de abrir mais 4.500 vagas para alunos de medicina (algo como 55
novas escolas). Num momento em que as universidade federais se encontram em
estado de penúria, essa meta torna-se um devaneio descompassado com a realidade
da nação.
Mais importante do que criar
novas faculdades seria aumentar as vagas para residência médica. Cerca de 6.000
novos médicos formados a cada ano não dispõem de locais para realizar a
residência, a etapa mais relevante para a formação de profissionais qualificados.
Outra proposta governamental, tão
cândida quando descabida, é autorizar o trabalho em nosso país de médicos
patrícios formados no exterior, sem exames de proficiência. Se 54,5% de médicos
recém-formados inaptos causam indignação, como reagir ao fato de que em 2011,
num exame oficial de revalidação de diplomas de 677 médicos graduados no
exterior, 90,5% deles foram considerados inaptos?
Termino referindo-me a uma
realidade que Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa, soube muito bem
descortinar. "Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor."
Reconheço que as inquietações expressas sobre as aptidões dos recém-formados
são justificadas por quem sente de fora.
Mas como um dos que sentem de
dentro, não posso deixar de dizer que, ao invés de algozes, a imensa maioria
dos novos médicos da nação são vítimas de um enredo perverso que mistura uma
sociedade permissiva, escolas médicas deficientes e governantes incapazes. Que
transformam esperanças incontidas em sonhos frustrados.
MIGUEL SROUGI, 66,
pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA), é professor
titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do
Instituto Criança é Vida
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