segunda-feira, 28 de janeiro de 2013



28 de janeiro de 2013 | N° 17326
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

Antonioni

Ouve-se nada. É um espaço interior e sombrio. É uma antiga igreja romana, com altas colunas. Pela luz do pórtico, delineia-se a sombra de um homem que avança. O homem logo aparece, caminhando com passos vacilantes de velho. A câmera aproxima-se do rosto. É Antonioni. Os cabelos brancos, iluminados por trás, formam-lhe uma auréola de santo. Tudo é de pedra e tudo é frio. Antonioni vai em direção a um conjunto escultórico. O silêncio persiste.

O olhar de Antonioni percorre o conjunto escultórico, fixando-se no rosto de um papa adormecido. Tudo é de mármore. Tudo, logo reconhecemos, é de Michelangelo. “Eis-me aqui, Michelangelo, eu, que tenho o teu nome, eu com minha humanidade que logo será pó e cinzas, e tu com tua eternidade.” A câmera faz um close no rosto do papa, captura suas pálpebras cerradas. Nunca um papa foi representado dessa forma humana e terrestre.

Muito lentamente o olhar de Antonioni desce, e então, em pormenores minuciosos, vai revelando o Moisés. Era isso que Antonioni busca. Antes, o olhar divagava. Agora, eis o semblante de Moisés, colhido por Michelangelo no tenso momento de ira ao constatar que seu povo se entregava à idolatria.

O olhar de Antonioni, atrás das lentes sujas dos óculos, age como outra câmera, levada pelas intenções do cineasta; mas não é apenas uma câmera, é mais do que isso, é uma alma que dialoga com o Moisés e com Michelangelo. “Agora te entendo, Moisés. Se tua cólera dirige-se a teu povo, minha indulgência a todos absolve. Estou pronto para partir. Essa é minha última visita. Minhas pernas trôpegas logo não terão forças.”

A mão de Antonioni, longa, trêmula, murcha, com dedos pontiagudos, aproxima-se da estátua. A mão procura o toque no mármore. Hesita um pouco, logo alcança seu objetivo. A ponta dos dedos percorre as volutas do tecido, desliza pelas reentrâncias, adentra os vãos na obscuridade. Já não se trata de toque orgástico, sequer erótico, sequer sensual. É um toque de quem busca descobrir o mistério e, não obstante, sabe que este jamais lhe será revelado.

Depois de 15 minutos, Antonioni abandona a igreja de San Pietro in Vincoli. Só agora se ouve algo, quase imperceptível, é música de Palestrina. Antonioni sai por onde entrou.

Eis o que é o filme Lo Sguardo di Michelangelo, de 2004. Está no YouTube.

Antonioni morrerá três anos depois. Um filme soberbo. Nenhuma palavra. Nada.

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