FERREIRA GULLAR
Uma
gata chamada Gatinha
Quando acordo no meio da noite, sinto aquela presença
estranha e logo sei que a folgada ali se instalou
Eu tinha um gato que se chamava Gatinho, nome esse que lhe
foi dado por meu filho Marcos. É que ninguém sabia que nome pôr no pequenino
siamês, que acabáramos de comprar. Gatinho viveu 16 anos e, quando morreu,
sofri tanto que decidi nunca mais criar gato nenhum.
E mantive essa decisão até que, um dia, minha amiga Adriana
Calcanhoto surpreendeu-me, trazendo, de presente, uma gatinha siamesa, que logo
se meteu debaixo do sofá da sala. Foi um custo tirá-la de lá.
Mas esse foi só primeiro problema que sua vinda para minha
casa me criou. Logo surgiu outro: ela só comia ração, e uma única e determinada
ração. Era uma gatinha moderna, nascida e criada num pet shop.
Adriana a trouxe com um pacote de ração, que acabou. Fui
comprar outro e, como não tinha igual, comprei uma ração de outro tipo
qualquer, que a gatinha rejeitou, de imediato. Cheirou e foi embora.
Saí em busca da ração igual a que ela costumava comer, mas
não achei. Ela ficou dias de jejum e eu entrei em pânico. Telefonei para
Adriana, que logo providenciou a entrega em minha casa da única ração que a
gatinha comia e que não se achava em parte alguma.
A solução era, portanto, acostumá-la a comer outra ração,
mais fácil de encontrar no meu bairro. O cara me explicou: você começa
misturando a ração que ela come, com qualquer outra que você comprar. Assim fiz
e deu certo. Um sossego. Faz dois anos que a gatinha come a nova ração que
compro numa loja aqui perto de casa.
Fora isso, essa gatinha é um barato. Se é verdade que ela
não é nada sociável, em mim ela confia cegamente e se derrete em meiguices. É
certo que passa boa parte do dia escondida, mas, quando aparece, atira-se no
chão e entrega a barriguinha para eu a acariciar.
O Gatinho não era assim, certamente por ser macho. Era
carinhoso, como todo siamês, mas não se entregava dessa maneira aos meus
afagos. Era coisa de amigos, de homem para homem. Já Gatinha (esse é o nome que
pus nela), não, quer mais é carinho mesmo.
Gatinha dorme comigo na minha cama, e com uma
particularidade: deixa que eu me ajeite e vai se colocar exatamente entre as
minhas pernas, bem aconchegada. Quando acordo no meio da noite, sinto aquela
presença estranha e logo sei que a folgada ali se instalou. Isso quando faz
frio; quando faz calor, ela prefere a ponta do colchão, que é mais fresco.
Mas isso é comigo, só comigo e mais ninguém. Se estamos os
dois na sala -eu na minha poltrona predileta, ela a meu lado, e soa a campainha
do porteiro elétrico, ela salta da poltrona e dispara pelo corredor. Some de
vez. Só aparece muito tempo depois que o intruso foi embora: aparece na porta
do corredor, espiando e farejando o tempo todo para se certificar de que não há
mais risco nenhum.
Até aí, tudo bem, cada doidinha com a sua mania. O que não
me agrada é outra mania sua: a de urinar no tapete da sala. Primeiro, mijou
numa das poltronas, tivemos que retirar as almofadas e lavá-las. Para evitar
novos problemas, cobri a poltrona com um plástico. Aí, ela mijou no tapete.
Lavamos o tapete e o cobrimos com plástico também; pois ela, todos os dias,
acorda vai até a sala e urina no plástico. Antes assim, porque o plástico é
facilmente lavável e não guarda cheiro.
No princípio, eu ficava furioso e ralhava com ela, que não
estava nem aí para minhas ameaças. E voltava a urinar ali mesmo. Conformei-me,
a Maria limpa; se ela não estiver, limpo eu. Virou rotina.
"Pior é minha gata", diz Maria, "que mija nos
sapatos das visitas". De qualquer modo, apesar de tudo, acho melhor ter um
gato (ou gata) do que não ter.
Mas isso não me livra de, a cada momento, me defrontar com
novas e difíceis situações. Neste fim de semana, fui comprar a ração da Gatinha
e soube que o fabricante deixara de fornecê-la. Fiquei preocupado.
"Faz 20 dias que ele não nos envia essa ração."
Saí à procura em outras lojas do bairro, mas de nada adiantou: o fornecedor
parara de fornecer. Liguei para meu neto, que mora no Humaitá e pedi a ele que
a procurasse nas lojas de lá. Em vão. Comprei então uma ração parecida com a
dela e pus em seu prato. Vamos ver se ela come.
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