segunda-feira, 14 de janeiro de 2013



14 de janeiro de 2013 | N° 17312
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

Peça de arte

Daniel Galera vem construindo uma carreira consistente, na qual dois elementos são desde logo visíveis: a contração às preocupações do ser humano de hoje, urbano, sem utopias e de amores difíceis, e a extrema preocupação formal.

Dir-se-ia que isso é o que se vê em qualquer bom escritor de sua geração, e é verdade, mas Galera possui algo que é seu e raro, que se constitui no sentido da peripécia, para usarmos um léxico de Aristóteles. Suas narrativas impregnam-se de ações, e essas ações falam por si mesmas no sentido de que sejam bastantes para compor a personagem e seus dilemas.

Galera não gosta de dizer ao leitor aquilo que o leitor já concluiu pela leitura das peripécias. Com isso, privilegia as conquistas da tradição narrativa do Ocidente, numa sequência que se inicia por Homero, passa pelo Cid Campeador, Cervantes, Goethe, Balzac, Flaubert e chega a Graciliano e João Ubaldo Ribeiro. A diferença é que nosso autor avança no sentido das características já anunciadas acima.

Seu último livro publicado (Cia. das Letras, 2012), Barba Ensopada de Sangue, se abstrairmos o título ameaçador, ratifica todas essas assertivas, mas dá um passo além pela superior competência em jogar o leitor numa trama que se desenvolve em círculos concêntricos [a personagem e suas circunstâncias humanas e sociais] que, a partir de certo momento, transformam-se numa espiral cujo vórtice é cambiante e disperso [as buscas da personagem].

Não se deve pensar, porém, que essa descrição algo esotérica seja um problema na leitura; não, não é necessário ter essas imagens em mente, basta entregar-se à narrativa, sem preconceitos.

O prêmio é a fruição do que acontece neste romance que é, a todos os títulos, soberbo.

O autor nos seduz para uma narrativa policial: o protagonista vai para Garopaba para elucidar um caso de homicídio em que a vítima é seu avô, um cadáver que vive na memória familiar. O complicador é que o protagonista perde a memória, mas a seletiva, aquela que deveria trazer à lembrança os rostos das pessoas. Eis aí um grande lance criativo, pelas inúmeras possibilidades que oferece ao escritor e ao leitor.

Eis aqui, em poucas e insuficientes linhas, quem é Daniel Galera e o que é este romance. O que se pede ao leitor é, além da disponibilidade à ficção, uma salutar tábua de valores, que possa compreender que o estranho é, muitas vezes, a chave de toda beleza. Porque esta é uma autêntica peça de arte.

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