segunda-feira, 28 de janeiro de 2013



28 de janeiro de 2013 | N° 17326
MOISÉS MENDES

A romaria dos parentes

– Era o fim do mundo.

A enfermeira Luciana Morales, 31 anos, não tem outra definição para o que viu quando chegou à emergência do Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, na madrugada de domingo. E não há como descrever aqui o que Luciana viu e ouviu. O fim do mundo começava ali, por volta das 4h, e se prolongaria ontem, como deve se estender hoje, até quando ninguém sabe.

Ontem à tarde, os dramas eram cruelmente renovados a cada minuto no hospital, por maior que fosse o esforço para aquietar a angústia da pior de todas as esperas numa tragédia – a da informação que não vem e, quando chega, pode ser arrasadora. Circulei por três horas pelos corredores do Caridade à tarde. Invadi o desespero dos outros e vi que foi-se mesmo o mundo de tanta gente em Santa Maria, e não só o dos que morreram, mas de pais, irmãos e amigos que terão de sobreviver.

A ronda no Caridade, o que mais recebeu feridos, fazia com que parentes atraídos de cidades vizinhas transformassem o saguão e todas as alas numa romaria de lamentações. Uns corriam e outros arrastavam-se nos corredores do Caridade. A família Pereira começou uma vigília às 5h da manhã e desabou por volta das 17h. Igor Stephan Pereira, filho do seu Neri e da dona Leones, não resistiu.

Mas até ser informada da morte, no fim da tarde, a família ficara mais de 12 horas sem informações. Parentes andaram por todos os hospitais. Ninguém tinha notícia do rapaz. No pátio do Caridade, a mãe, o pai e as primas Liege e Paola esperavam por alguma informação que não vinha.

– Quanto mais passa o tempo, mais bate o desespero – dizia Liege Brum.

O tempo estancou de repente às 17h. A família foi informada de que Igor havia morrido. O estudante do primeiro semestre de psicologia saiu em estado grave da boate em que comemorava aniversário. Morreu um dia antes de fazer 20 anos.

A informação parcial, que maltratou os Pereira, muitas vezes se resumia ao que estava escrito numa lista, na entrada do hospital, com os nomes de “pacientes que vieram da Boate Kiss”. Na lista, os nomes das estudantes Flavia Maria Torre Lemos, Andrieli Righi e Vitória Sacol. Mas, assim com os Pereira nada sabiam de Igor, ninguém sabia nada das três amigas.

Procuravam por Flavia, Andrieli e Vitória os amigos Vagner Ferreira e Kefen Corrêa. Não eram encontradas no próprio hospital. O tio Fernando Alves também procurava por Andrieli. Às 16h40min, uma funcionária o informou:

– Ela não está mais aqui.

O tio retrucou:

– De Porto Alegre, informaram que ela estava aqui.

O tio insiste e dá uma pista, sabendo que a identificação das mulheres, que levam documentos em bolsas, era mais difícil:

– Ela é morena, usa um piercing na boca.

Meia hora depois, fui à emergência, de onde saíam macas com pacientes graves, entubados, para hospitais de Porto Alegre. Numa maca, uma moça morena. Alguém diz:

– Esta é a Drieli.

Seria a Andrieli procurada pelos amigos e pelo tio? Não era. Drieli Pedroso Lucas estava sendo embarcada numa ambulância que a levaria ao Hospital Mãe de Deus, na Capital. A emergência do pronto-socorro do Caridade chegou a receber mais de 70 pessoas durante a madrugada. Foi quando a enfermeira Luciana Morales viu o horror. Drieli era das 20 pessoas que ainda estavam ali, no final da tarde – a maioria na CTI.

Aquela não era, como se poderia imaginar, a hora em que a urgência cede lugar à tensão controlada. Luciana continuava ali, sob pressão intensa.

Era a hora em que alguns pacientes começavam a piorar, entre os quais os que inalaram muita fumaça e tiveram queimaduras nos pulmões. Foi o que aconteceu com Lauro Clos Marçal, 30 anos. Lauro estava bem até o início da tarde, quando piorou e foi levado para a unidade coronariana. Na vigília, tinha a distância a companhia dos pais, Amilton Valandro Marçal e Evelyn Russowsky, do irmão Diego e da prima Karen.

Lauro, estudante de Direito na Faculdade Metodista, não deveria estar na boate. Amilton, professor da faculdade de Veterinária da UFSM, ganhou o convite para a festa de uma colega da universidade. Diego ficou com o ingresso. Desistiu de ir e o repassou ao irmão.

À tarde, a família se revezava no canteiro entre as avenidas Pinheiro Machado e José Bonifácio, onde fica o hospital. Marcelo Morais, 32 anos, porteiro, estava ali à espera de notícias do primo Pablo Ricardo Pacheco, 21 anos.

– Esta é a praça da agonia – disse Morais, enquanto se consolava por ter notícias do primo, que estreava na madrugada de ontem como segurança da Kiss.

Pablo estava ao lado do palco, onde o fogo começou. Marcelo achava que o pior já havia passado, e assistia aos outros dramas de quem também ficava à espera de algo na pracinha:

– Agora há pouco, aquela senhora que estava aqui foi informada da morte da filha.

Pais viviam a aflição de ter perdido um filho e saber que o outro ainda lutava para sobreviver. Edson Luís Pereira Biscaino, de Manuel Viana, buscava notícias de Renan, 25 anos, internado na CTI. O outro filho, Cássio, 20 anos, morreu na boate. Teriam morrido pelo menos nove jovens de Manuel Viana.

Eliana Brondani Rosso, mãe de um dos sobreviventes, Delvani Rosso, 20 anos, também internado na CTI, orgulhava-se do outro filho que participava da festa. Jovani, de 26, salvou muita gente que conseguiu carregar para fora da boate, quando as portas foram arrombadas.

– Ele arrastou gente pelos cabelos – contava a mãe.

A desinformação não tinha culpados, nem poderia ter. Como conseguir identificar tanta gente? Não havia como, dizia a enfermeira Luciana, que não estava na escala e foi para a boate, para ajudar no socorro, e depois para o hospital – ao ser informada da tragédia por uma amiga. Ao seu lado, Zuriel Cristo, 40 anos, tentava acalmar parentes que buscavam notícias. Zuriel é enfermeira do hospital, formada em psicologia. Nos corredores, atuava como psicóloga:

– O importante é estar junto.

Laís Pires Moreira tinha três informações destruidoras: perdeu o sobrinho Leonardo Lima Machado, 27 anos, cabo do Exército, acompanhava outra sobrinha, Jarlene Moreira Spitzmacher, na CTI, e tentava obter notícias do primo Douglas Machado, 23 anos, que ninguém sabia onde poderia estar.

No fim da tarde, o revezamento de parentes na pracinha em frente e nos corredores do hospital mantinha de prontidão muito mais irmãos, tios, primos e amigos do que os pais de quem estava internado, ou tinha o nome na lista mas não era localizado. Muitos pais haviam sido vencidos pelo cansaço. A notícia ruim andava por ali, ainda encoberta, pronta para massacrar alguém.

A notícia ruim poderia estar ali ou no Centro Desportivo Municipal, o Farrezão, para onde os corpos eram levados. Foi ali que Leandro Alves, primo de Andrieli, teve a informação de que os amigos Vagner e Kefen e o tio Fernando não queriam receber. Entrou na fila de identificação dos mortos e reconheceu a prima ao lado dos corpos das outras duas amigas também procuradas – Flávia Maria Torres Lemos e Vitória Saccol. Andrieli tinha 22 anos e estudava num cursinho para fazer vestibular.

Ontem, às 20h30min, quando telefonei para o tio de Andrieli, conforme havia combinado, para saber se ela havia sido localizada, torci por ela, por ele, por Vagner e por Kefen. A voz de Fernando Alves, quando atendeu ao telefonema, tinha o peso, a densidade da notícia ruim. Esvaiu-se ali a ilusão de que, em meio ao horror, eu poderia encerrar este texto com uma notícia boa.

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