29
de janeiro de 2013 | N° 17327
MOISÉS
MENDES
O dia seguinte dos que chegaram
primeiro
Uma
imagem atormenta o médico Pedro Copetti desde a madrugada de domingo. Copetti
enxerga duas jovens dentro de uma ambulância do Samu. Uma está deitada na maca.
A outra está sentada na cadeira usada pelos médicos, a cabeça pendendo para o
lado, os braços estendidos.
– As
duas estavam mortas.
Foi
ali, naquele momento, quando, por impulso, ainda tentou reanimar a jovem
sentada, que Copetti se deu conta de que não havia mais nada a ser feito.
Frequentadores da boate e bombeiros retiravam do prédio e estendiam na calçada
e no meio da rua corpos inertes. A tentativa de Copetti de salvar intoxicados
pela fumaça havia se esgotado. Ontem, ao conversar com Zero Hora, ele relembrou
os rostos das meninas e chorou por duas vezes.
Copetti,
32 anos, estava na primeira equipe de socorro do Samu a chegar ao local. Ele, o
enfermeiro Fabiano Miranda, 34 anos, e o motorista Gilnei da Silva
desembarcaram na Rua dos Andradas quando os próprios frequentadores, que
conseguiram sair logo depois do incêndio, arrastavam jovens para a rua.
Um
dia depois, os dois se reencontraram pela primeira vez, no posto do Samu, e
abraçaram-se com força. Antes, o médico havia telefonado ao enfermeiro para
dizer:
– Tu
foste meu irmão naquela hora.
Foi
pouco mais de uma hora na frente da boate. E foram muitas horas depois, quando
saíram dali, no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo e dentro de um
helicóptero com pacientes levados para Porto Alegre.
Na
rua, Copetti e Miranda enfileiravam os corpos na calçada, tentando identificar
prioridades. Chegaram a ficar diante de uma fileira de 40 pessoas
inconscientes, que respiravam com dificuldade. Na primeira viagem ao Hospital
de Caridade, Copetti levou quatro jovens, enquanto o enfermeiro ficava
monitorando os socorridos.
Na
segunda viagem, levou um queimado – outras ambulâncias já participavam do
socorro. Quando retornou ao local para a terceira ida ao hospital, viu um grupo
de rapazes acomodar uma moça na maca e outra na cadeira da ambulância. Eram as
duas mortas.
Os
corpos foram então retirados da van, para serem levados depois a caminhões da
Brigada. Rareavam os sobreviventes. Começavam a chegar à rua os corpos dos que
não resistiram. O médico lembra, enquanto exalta a bravura de rapazes que
auxiliavam os bombeiros:
–
Não havia mais como classificar quem estava pior ou melhor, mas quem estava
morto e quem estava vivo.
Copetti
convocou então os médicos Carlos Fernando Dornelles e Claudio Azevedo, que
estavam em casa, e partiu com eles e Miranda para o Hospital de Caridade.
A
missão era outra – ajudar a salvar os que se amontoavam em corredores, com
entubação e ventilação mecânica. Às 11h, ele e o enfermeiro também foram os
primeiros a levar de helicóptero uma moça e um rapaz para o Hospital de Pronto
Socorro, de Porto Alegre. Miranda voltaria mais uma vez à Capital, com mais
dois pacientes. No retorno a Santa Maria, ainda trabalhou até as 19h no
Caridade.
O
choro de Copetti, ontem à tarde, é parte do que, no jargão das desgraças, ainda
se define como o momento em que a ficha começa a cair. Para um colega dele no
Samu, o enfermeiro Felipe Cargnelutti Fontoura, 21 anos, que também participou
da mobilização da madrugada de domingo, até ontem pela manhã “muita gente ainda
estava no automático”.
– O
problema vai ser hoje (segunda-feira) à tardinha.
Copetti
e Miranda chegaram à calçada da boate pouco depois dos bombeiros. O primeiro
caminhão da guarnição a estacionar na Rua dos Andradas saiu da unidade, no
centro da cidade, às 3h18min. Estavam na viatura, com outros colegas, os
sargentos Sergio Rogerio Chaves Gularte, 46 anos, e Dilmar Lopes, 45 anos, e o
soldado Luciano Vargas Pontes, 29 anos. Todos experimentavam, no início da
tarde de ontem, a mesma sensação: era como se continuassem ouvindo os celulares
que tocavam sem parar, nos bolsos e nas bolsas das vítimas.
Lopes
conta que desligou alguns aparelhos, mas nunca pensou em atender aos chamados.
E se emociona ao contar que duas palavras apareciam com frequência, como
identificação das chamadas, no visor:
– Às
vezes, aparecia escrito: mãe. Outras vezes, pai.
Lopes
enfrentou um drama pessoal. O filho, Matheus, 21 anos, estudante de Enfermagem,
o avisou à noite que iria à boate. Quando o pedido de socorro aos bombeiros foi
acionado, o militar saiu do quartel abalado:
–
Quando iniciamos os resgates, eu pensei que, em algum momento, poderia estar
tirando meu filho dali.
Ele
ligava para o filho, mas a ligação caía na caixa postal. Lopes buscava corpos
na boate, os colocava na calçada e voltava a tentar falar com o filho. Era como
se o seu telefonema estivesse chamando todos os celulares dos mortos dentro da
boate. E o filho não atendia.
Somente
às 5h30min, quando os bombeiros já sabiam que não havia mais nenhuma pessoa
viva no local, Matheus telefonou para dizer que desistira da festa, porque
teria de enfrentar uma longa fila, e estava na casa de um amigo. O sargento
Gularte, ao seu lado, lembra que, quando chegaram à Rua dos Andradas, ouviam os
gritos de socorro que vinham de dentro da boate. Aos poucos, as vozes foram sumindo.
Os
bombeiros entraram na Kiss com cilindros de oxigênio e lanternas com geradores.
Encontraram obstáculos na porta. Os corpos caídos dificultavam o acesso.
– Da
entrada até um pedaço adiante, ainda tinha gente respirando, junto com gente
morta.
Depois
dos primeiros resgates perto da porta, Gularte entrou na boate arrastando-se,
levando junto uma mangueira de água. Cruzava sobre corpos e cacos de vidro de
copos e garrafas.
–
Perto e dentro dos banheiros havia pilhas de cadáveres. Era como se fosse um
campo de concentração nazista.
Morreram
ali porque tentaram sair e encontraram a porta fechada. Retornaram na direção
dos banheiros, na tentativa de respirar pelas frestas de janelas abertas para a
rua. O sargento Albino Benjamin Peripolli, 50 anos, que chegou à boate quando
já amanhecia, lembra que o cenário no banheiro feminino era aterrador:
– Os
corpos estavam amontoados. Eram tantas pessoas mortas que o monte de corpos
chegava à altura das pias.
Com
a inalação de fumaça, as mulheres desmaiavam e iam caindo sobre as outras. Já
não havia mais o que fazer, nem quando rapazes sem camisa, que apareceram em
vídeos vistos na internet, golpeavam as paredes, na tentativa de ventilar os
banheiros ou criar pontos de fuga.
Os
bombeiros não sabem dizer quantas pessoas foram tiradas com vida, por eles e
pelos frequentadores que não se afastaram do local enquanto existia a chance de
encontrar sobreviventes. Para o sargento Gularte, a imagem mais apavorante, que
ontem ainda o atormentava, foi a dos caminhões-baú da Brigada Militar que
carregavam os mortos:
–
Enquanto estive ali, levaram um caminhão e meio com corpos. Infelizmente, iam
amontoados. Mas salvamos muita gente.
Gularte
trabalhou por cinco horas no resgate. Ontem, retornou ao quartel dos bombeiros,
onde se reuniu com um grupo de colegas, a pedido de Zero Hora, para que
contassem o que fizeram, o que viram e como enfrentavam o dia seguinte. O
sargento arrastou para a rua meninas, vivas e mortas, da idade da filha,
Yohana, de 19 anos, comerciária e estudante de Administração.
–
Para quem estava lá, aquilo foi uma eternidade.
Para
o sargento Bruno Tupinambá Francescato Severo, 49 anos, os celulares chamando
toda a noite criaram uma situação absurda, que ele não esquecerá. O cenário
fumacento, escuro e macabro da boate foi, durante horas, tomado pela música e
por outros sons típicos dos aparelhos dos jovens. E não havia nada a fazer:
–
Aquilo nos maltratou muito.
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