sábado, 26 de janeiro de 2013


RUTH DE AQUINO

Pra lá de Marrakech

Não tenho a menor noção do que aconteceu no Brasil na semana passada. Nem em qualquer outro país. Não sei quantos morreram na Argélia. Estou sem conexão de internet numa casa no campo, a 30 quilômetros de Marrakech. Um paraíso com pomar, horta, galinhas, coelhos, patos e alta gastronomia que pertence a uma amiga francesa.

Ouvi dizer que nevou muito na Europa. Um amigo diplomata em Rabat me disse no celular que o Instituto Lula em São Paulo tinha sido invadido por famílias sem terra. E que a Ivete Sangalo ganharia um cachê de R$ 650 mil para inaugurar um hospital no Ceará...! Mas a ligação caiu e meu aparelho marroquino pré-pago estava quase sem crédito. Pensei: quero ou não saber mais?

Eu não queria saber mais. Isso já deve ter acontecido com você.

Para os viciados em interconexão – e o Brasil é o segundo do mundo no Facebook –, esse isolamento pode parecer uma tortura. O plano original não era retiro cibernético, espiritual ou mental. A semana em Marrakech, “La ville rouge”, ou a cidade vermelha – referência às cores de terra batida das construções –, seria uma fuga temporária do frio e da escuridão de Paris. Uma volta rápida a essa monarquia que cruzei de carro por um mês em 1980, de Tanger a Agadir. Uma monarquia constitucional com 98% de islâmicos.

Eu saíra da França em busca de um intervalo de luz, chá de menta e temperos exóticos. E de tempo para ler romances. Mantendo os sentidos aguçados, sempre encontraremos mais do que buscamos.

Uma doença colateral do mundo digital é a dispersão. A ansiedade de se informar e se comunicar toma o lugar de prazeres arquivados. Tenho a sensação de que nos colocamos na quarentena e nos esquecemos ali, no porão de nossos computadores. Até o hábito de conversar olhando no olho tornou-se secundário. Com o olho viciado na tela, tudo passa rápido demais e é esquecido no minuto seguinte.
Descobri que não havia internet. Meu iPhone não tinha sinal. Não senti pânico. Ao contrário

Antes de partir, comprei num sebo inglês na Rive Gauche dois livros de Paul Bowles, The sheltering sky (O céu que nos protege, adaptado para o cinema sob a direção de Bertolucci e filmado no deserto) e The spider’s house (A casa da aranha), ambientado na cidade imperial de Fez. Não conheço melhor companhia de viagem do que livros escritos por quem viveu ali. É a imersão dentro da imersão. Bowles nasceu em Nova York, mas viveu 50 anos em Tanger, esse porto marroquino que olha para a Espanha. Ele descreve o deserto como um lugar em que somos obrigados a olhar para cima, na ausência de uma vegetação generosa.

“Este é o lugar que queria te mostrar! Aqui o céu é tão estranho, é quase sólido, como se nos protegesse do que há lá em cima. E o que há lá em cima? Nada, não há nada, somente a noite…”

As temperaturas de janeiro no Marrocos confundem nosso corpo: no mesmo dia, de 4 graus a 22 graus. Eu dirigia um carro alugado e infelizmente sem buzina. Tinha driblado na estrada os pastores de ovelhas, as mulheres com roupas brilhantes bérberes – os povos das montanhas do Norte da África – e o enxame de motos, bicicletas e carroças dirigidas por homens com capuzes e túnicas até os pés, as djellabas.

Cheguei a um riad no campo alaranjado pelo pôr do sol. Riad é o nome das casas tradicionais marroquinas dotadas de jardins e pátios interiores com fontes, plantas, mesas e cerâmicas decorativas. Ao longe, as montanhas nevadas do Alto Atlas. Um empregado da casa cantava sua prece, agachado junto à entrada.

Na noite fria e estrelada, tomei na sala, em sofá rente ao chão, um chá de menta temperado com absinto e sálvia. O melhor da minha vida. Como o álcool é interditado aos muçulmanos, o chá de menta é apelidado no país de “uísque marroquino”.

Descobri que não havia internet. Meu iPhone não tinha sinal. Não senti pânico. Ao contrário. Preferi nem ver televisão. Não entrei em cibercafé na cidade.

Marrakech foi fundada em 1070. É loucamente colorida e borbulhante. Continuamos a nos perder nas medinas muradas e nos souks, os mercados. A praça mais central é a Djemaa el Fna, com os encantadores de serpentes cansadas e as insistentes tatuadoras de hena. Prefiro a pequena Place des Épices (Praça das Especiarias), mais autêntica e acolhedora. Um banho árabe de vapor num hamman com massagem de argila, sabão mineral e óleo de argan nos impregna com aromas de outra civilização.

Mas há coisas irritantes. O assédio exagerado de vendedores e guias. A mania de pedir duas ou três vezes o preço de tudo – seja um tomate ou um tapete. Cansa negociar. Turistas se sentem traídos pela gentileza aparente de marroquinos que cobram dirhams por simples informações. O absurdo atual em Marrakech é a profusão de motos nas ruelas, quase atropelando todo mundo e deixando um rastro de poluição irrespirável. Tinha de ser proibido.

Hora de voltar para o riad no campo e não saber de nada.

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