RUTH
DE AQUINO
"Amor"
Um título
pode dizer muito ou nada. “Amor” é uma palavra batida e banalizada que ganha
uma dimensão épica no filme indicado, na semana passada, a cinco estatuetas do
Oscar. Amor, do diretor Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes, retrata um
casal de octogenários, Georges e Anne, professores aposentados de música clássica.
A história narra nossa impotência diante da doença e da morte.
Em
duas horas de cinema ou um ano de vida real, dois atores magistrais, Jean-Louis
Trintignant, de 82 anos, e Emmanuelle Riva, de 85 (a belíssima protagonista de
Hiroshima meu amor em 1959), nos transformam em passageiros da agonia humana. A
agonia diante do sofrimento da pessoa que amamos. O que fazer quando o doente
nos faz prometer que nunca mais será hospitalizado? Estamos dispostos a adoecer
junto? Será a doença mais forte que o amor?
À exceção
de uma cena de concerto, o filme se passa inteiro dentro do apartamento
elegante e forrado de livros, com um piano na sala de estar. São idosos com
cultura, dinheiro e prestígio. Vivem sós – sem empregados, como é o normal na
Europa. O que mais nos encanta, quando Georges e Anne ainda estão sadios, não são
as conversas sobre literatura e música, mas os olhares amorosos, os gestos de
carinho, a cumplicidade nos atos mais cotidianos, como o café da manhã na
cozinha.
A
rotina se quebra numa dessas manhãs, quando Anne sofre um AVC, acidente
vascular cerebral. De repente, ela olha o vazio, não responde. O casal vai ao
hospital, mas nós, espectadores, não. Na cena seguinte, Georges e Anne chegam
de volta ao apartamento, ela de cadeira de rodas, com o lado direito paralisado
e o orgulho ferido.
“Quando
adoecemos e ficamos imobilizados, passamos a viver entre quatro paredes. O
mundo exterior desaparece”, diz Haneke. Nosso olhar profana a intimidade do
casal, da cozinha ao banheiro, do banheiro à sala, da sala ao quarto, do quarto
ao corredor.
Será
a doença mais forte que o amor? Estamos dispostos a adoecer junto com quem
amamos?
Daí em
diante, cama e móveis são adaptados às limitações de Anne. E Georges passa a
viver em função dela. Ele se debilita aos poucos, até que Anne sofre um novo
ataque, enfermeiras vêm e vão, e a música envolvente de Schubert é substituída
por gritos dela: “Mal... mal... mal”. Na tradução literal, “dói... dói... dói”.
E mais do roteiro não conto ao leitor, embora Haneke antecipe o final na
primeira cena. Talvez para não encorajar ilusões.
O
casal tem uma única filha, Eva (Isabelle Huppert), que vive no exterior, em
Londres, com o marido, ao jeito das famílias contemporâneas globalizadas, em
que os velhos vivem muito mais e os filhos, de longe, não conseguem ajudar sem
virar suas vidas pelo avesso. Eva, em raras visitas, chega ansiosa, com muitas
perguntas e nenhuma solução. “De que nos serve sua inquietação?”, pergunta o
pai, friamente.
É um
filme duro, e quem conhece a direção de Haneke – A professora de piano, A fita
branca, Caché – sabe que esse austríaco nascido na Alemanha não dá brecha para
a pieguice. “Quando escolhemos um tema universal, como amor, velhice e morte, há
dois grandes perigos: o sentimentalismo e a autocomiseração. Não é por ser
sentimental que alguém tem emoções, não se iluda!”, afirmou o diretor.
Segundo
as resenhas dos críticos, eu deveria ter chorado ao ver o filme na tarde fria
de Paris na semana passada. Deveria, porque todo mundo chora. Talvez devesse
ter soluçado, me acabado em lágrimas. Mas não. Meu pai e minha mãe têm 90 anos,
estão no Rio.
Meu
pai acaba de sair de uma internação no hospital por pneumonia e minha mãe foi
diagnosticada há dez anos com Alzheimer. Ela é linda, inteligente e ainda
reconhece filhos e netos. Por mais cruel que seja a enfermidade da perda
gradual da lucidez, continuam intactos seu instinto maternal e o ciúme que
sente de meu pai.
A
realidade da minha família é tão mais branda do que vi na tela. Nossos momentos
presentes precisam ser celebrados porque não se controla o amanhã. Amor é uma
lição de vida, mais que de morte.
Haneke
não quis mostrar tudo, muito menos “os horrores e as humilhações” das clínicas
de repouso, dos asilos ou das alas geriátricas dos hospitais. “Um filme onde
tudo é dito está morto. Devemos nos aproximar ao máximo da complexidade de uma
situação e deixar aberta a interpretação, para que o filme não termine na tela,
mas na sua cabeça, no seu coração... ou no seu ventre.”
Há quem
saia do cinema chocado pelas cenas mais duras do filme. Eu saí envolvida pelas
cenas mais ternas. Quando Georges retira do banheiro Anne, já paralisada
parcialmente, e a levanta, os corpos enlaçados, em pé, ambos arrastando os pés
numa dança trôpega até a cadeira de rodas.
Quando
ela interrompe uma refeição e pede com urgência os álbuns de fotos da juventude
a dois. Quando Georges vê a miragem de Anne tocando piano, o som de Schubert
invade tudo e, repentinamente, ele desliga o aparelho de CD. Triste, simples,
real e belo.
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