13
de janeiro de 2013 | N° 17311
MARTHA
MEDEIROS
Prosopagnosia
Eu
estava na fila do cinema, e ela dois passos à frente. Ela virava para trás, me
olhava, e logo virava para frente de novo. Até que numa dessas viradas ela disse
oi. Eu retribui: Oi. Ela: É isso aí, tu não me conhece, mas eu te conheço: tem
que cumprimentar.
Eu
sei, amiga.
Leitores
me cumprimentam sem que eu os conheça, e tudo certo, já que há uma foto minha
ao lado da coluna do jornal. Só vira um problema quando eu realmente conheço a
pessoa que me cumprimenta, já conversei com ela em algum momento da vida, e não
faço ideia de quem seja. Escrevi certa vez sobre isso: se a pessoa é a
recepcionista da minha médica, e sempre a vejo de coque e de uniforme branco,
ao passar por mim de vestido floreado e cabeleira solta no shopping, não vou
reconhecê-la.
Se o
sujeito com quem cruzo na academia, sempre de calção e camiseta, entrar no
restaurante de camisa polo e um blusão amarrado em torno do pescoço, não vou
reconhecê-lo. Se o porteiro do meu prédio for filmado na arquibancada de um
estádio vestindo a camiseta do seu time e segurando um cartaz dizendo “Olha eu
aqui, Galvão”, periga o Galvão saber quem é: eu, não. Tenho uma incapacidade
crônica de identificar pessoas fora do habitat em que costumo encontrá-las.
Sempre
me justifiquei dizendo “Sou péssima fisionomista”, que é um chavão, mas não é
mentira, e que, aliado aos meus três graus de astigmatismo, me garantia o
perdão de algumas boas almas. Até que outro dia entrei numa loja de conveniências,
um cara abriu os braços ao me ver e disse numa alegria comovente: “Marthinha!”.
Achei
meio íntimo para um leitor. Sorri amarelo e dei um “oi” igual ao que ofereci à
moça da fila do cinema. Ele insistiu: “Martha, sou eu!”. Socorro, eu quem?
Então ele disse seu nome. Pasme: era um ex-namorado!! A meu favor, deponho que
foi um namorado da época da faculdade (não me obrigue a fazer as contas), mas,
ora, ainda que tenha sido no tempo das cavernas, conviveu comigo. Ao menos o
seu olhar deveria ser o mesmo. Me senti um inseto.
Pois
bem, depois de anos soterrada em culpa, descubro que a medicina está do meu
lado. Acabo de saber que “sou péssima fisionomista” possui nome científico:
prosopagnosia. Uma doença que debilita a área do cérebro que distingue traços e
expressões faciais. Estou lendo o excelente Barba Ensopada de Sangue, de Daniel
Galera, cujo personagem vive o mesmo desconforto.
Alguns
médicos dizem que há apenas 100 casos diagnosticados no mundo – provavelmente
eu e outros 99 acusados injustamente de ter o nariz em pé. Mas há quem diga
também que o problema é mais comum do que se pensa e que atinge uma a cada 50
pessoas, ou seja, é praticamente uma epidemia.
Comum
ou incomum, me concedam o benefício da dúvida: talvez eu seja uma pobre vítima
da prosopagnosia e por isso não saio por aí dando dois beijinhos e perguntando
pela família de quem, a priori, nunca vi antes. Se não for prosopagnosia,
acredite: é astigmatismo evoluindo para uma catarata, somada a uma palermice
que me dificulta distinguir semblantes. Nariz em pé, juro que não é.
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