ELIO
GASPARI
A festa de Abraham
Lincoln
Presente
para o verão: um grande filme com um grande ator, saído de um belo livro, sobre
um período memorável
Coisa
muito boa. Um grande filme ("Lincoln") de um soberbo diretor (Steven
Spielberg), com um magnífico desempenho (Daniel Day-Lewis no papel do presidente),
extraído de um belo livro ("Team of Rivals", de Doris Kearns Goodwin)
sobre um luminoso período da história, o final da Guerra Civil americana, com o
triunfo do progresso sobre o atraso.
São
duas horas e meia de arte, prazer e instrução. Spielberg fez seu filme tratando
das poucas semanas durante as quais Lincoln dobrou a Câmara dos Deputados,
aprovou a 13ª emenda à Constituição e acabou com a escravidão nos Estados
Unidos. O Sul já estava derrotado, mas a libertação definitiva de 4 milhões de
negros significaria o maior confisco patrimonial da história.
O
filme saiu do "Team of Rivals", no qual o episódio da aprovação da
emenda, com suas tramoias, ocupa menos de dez páginas. A mágica de Spielberg
esteve em capturar a alma da obra de Doris Kearns Goodwin. Ela trabalhou na
Casa Branca, escreveu sobre os presidentes Roosevelt, Kennedy e Lyndon Johnson.
(Seu marido, Richard Goodwin, assessorou os dois últimos e, em julho de 1962,
defendia que os militares derrubassem logo o presidente João Goulart.)
O
Lincoln de Daniel Day-Lewis entrará para a história do cinema como uma das
melhores caracterizações de um personagem, disputando com o general Patton de
George C. Scott, que era mais fácil.
Aquilo
que parece exagero tem tudo para ser acerto. O andar de Lincoln era esquisito,
sem se apoiar no calcanhar, porque tinha pés chatos. Ademais, era desengonçado
mesmo. Resta só um problema: não há gravação de sua voz.
Spielberg
cometeu poucas licenças cenográficas. Uma delas, deliberada. Na rendição do
general sulista Robert Lee, Ulysses Grant, comandante das tropas do Norte,
aparece com o uniforme em razoável estado e as botas limpas. Na realidade,
estava enlameado e a roupa, amarfanhada. Quem os visse, pensaria que o vencedor
da guerra fora Lee. Além disso, é improvável que Thaddeus Stevens (Tommy Lee
Jones) tenha levado para casa o original da emenda.
A
edição americana do "Team of Rivals" tem 944 páginas. A autora fez
uma versão resumida que foi publicada na França e saiu no Brasil, com um terço
do tamanho. Com os cortes, sumiu a cabala narrada no filme.
O
"Lincoln" acaba de chegar às livrarias. Custa R$ 34, e não tem versão
eletrônica. Desse jeito, cria-se um pedágio para o uso da língua portuguesa,
pois o e-book da edição integral, em inglês, sai por R$ 20,39.
LOTA
JÁ SABIA
Para
os arquivos do prefeito Eduardo Paes e da doutora Jurema de Sousa Machado,
presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
No
dia 28 de outubro de 1964, o governador Carlos Lacerda pediu ao criador do Iphan,
Rodrigo Mello Franco de Andrade, o tombamento do parque do aterro do Flamengo.
Foi atendido.
Em
dezembro daquele ano, Lota de Macedo Soares, a quem se deve a maravilha,
enumerou para o doutor Rodrigo todas as obras e edificações do parque,
"feitas ou a fazer". Lá está uma "marina na enseada da
Glória". Não há previsão de auditórios, estacionamentos ou centro de
convenções. Até aí, nada de novo. O relevante na carta de Lota foi sua
premonição:
"Pelo
seu tombamento, o parque do Flamengo ficará protegido da ganância que suscita
uma área de inestimável valor financeiro, e da extrema leviandade dos poderes
públicos quando se trata da complementação ou permanência de planos".
O
parque foi tombado. Se Paes ou Souza Machado olharem em volta, verão a
"ganância". Se deixarem que se construa um mafuá na área da marina,
verão no espelho a "leviandade dos poderes públicos".
IVETE
NÃO DÓI
O
governador Cid Gomes contratou a cantora Ivete Sangalo para animar uma
inauguração de hospital pagando-lhe R$ 650 mil pelo show.
Quando
o Ministério Público reclamou, ele disse que "doa a quem doer",
realizará o evento.
O
doutor pode torrar R$ 650 mil na inauguração de um hospital. O que ele não pode
é misturar o nome de Ivete Sangalo com algo que doa.
EM
PINDORAMA, O SUL VENCEU
Deve-se
a Darcy Ribeiro um resumo da desdita brasileira na segunda metade do século 19:
"Aqui o Sul venceu". Enquanto na Guerra Civil americana morreram 600
mil pessoas e entre 1863 e 1865 libertaram-se todos os escravos, em Pindorama, nessa
época havia cerca de 2 milhões de pessoas escravizadas, mas a abolição só veio
em 1888.
D.
Pedro 2º manteve-se neutro (piscando o olho para o Sul) e os portos brasileiros
davam guarida a navios rebeldes que pirateavam no Atlântico Sul. Isso até outubro
de 1864, quando o governo acolheu no porto de Salvador uma embarcação
confederada. Uma canhoneira do Norte atacou o barco, sequestrou-o e afundou-o
em alto mar.
A
essa época, o embaixador americano no Brasil era James Webb, um jornalista
americano, cupincha do secretário de Estado William Seward (aquele que usa
roupa de brocado no filme).
Um
picaretaço. Achava que a abolição era mais perigosa que a escravatura. Diante
da simpatia de Lincoln pela ideia de uma deportação dos negros americanos, Webb
foi à luta e tentou organizar uma empresa de colonização capaz de trazer 100
mil negros para a Amazônia. Ela teria um capital binacional de até 5 milhões de
dólares e cada deportado receberia um lote de 40 hectares, uma choupana e algum
equipamento.
O
presidente da companhia seria nomeado pela Casa Branca. Quem? Ele. O plano
naufragou em Washington, em Londres e no Rio de Janeiro. Aqui, mostrando que
Darcy Ribeiro tinha razão, o marquês de Abrantes disse a Webb que a migração
lhe parecia inviável, pois o governo imperial não pretendia admitir negros
livres na Terra de Santa Cruz. (Passados mais de 150 anos, o gerente da
concessionária Autokraft da BMW, na Barra da Tijuca, enxotou da loja uma
criança negra livre de sete anos.)
A
Guerra Civil americana causou tanto horror à sociedade escravocrata brasileira
que o maior dos poetas abolicionistas, Castro Alves, passou batido no assunto.
Seis anos depois da morte de Lincoln, chamou seu assassino de "cavaleiro
sinistro".
Terminada
a guerra, d. Pedro foi aos Estados Unidos, visitou o presidente Grant e andou
de braço dado com o general Sherman, o devastador do Sul. Sua obra foi mostrada
em "E o Vento Levou...".
As
relações dos Estados Unidos com o Brasil nesse período estão contadas num
grande livro: "O Sul mais Distante" ("The Deepest South"),
do professor americano Gerald Horne. A tradução, em papel, sai por R$ 59,50. O
original está na rede por R$ 20,72.
Nenhum comentário:
Postar um comentário