MICHEL
LAUB
Tigres, tsunamis e Deus
Como
a ideologia e a religião, a arte é uma tentativa de dar sentido à existência
A
ideia de que a natureza é indiferente aos valores humanos, embora não aos seus
atos, é incômoda por sua gratuidade amoral. Dois filmes em cartaz lidam com o
problema de maneira distinta. O primeiro é "O Impossível", de Juan
Antonio Bayona, cujo cenário é uma praia da Tailândia atingida pelo tsunami de 2004.
Baseada
em fatos reais, a história acompanha a família de um executivo inglês (Ewan
McGregor) e sua esposa médica (Naomi Watts) em meio à catástrofe, e não poupa a
plateia de um registro detalhado do horror -cadáveres, pernas gangrenadas, o
rastro de destruição física e psicológica no que um minuto antes era o paraíso
na Terra.
O
segundo filme é "As Aventuras de Pi", de Ang Lee, sobre um
adolescente indiano (Suraj Sharma) que sobrevive a um naufrágio e passa meses
num bote, acompanhado de um tigre. Inspirada no romance de Yann Martel, que por
sua vez se inspirou numa novela de Moacyr Scliar, a direção evita o realismo e
se entrega à fantasia do 3D. Isso está no azul do céu e do mar, no movimento
das tempestades, nas baleias, suricatos, tubarões e cardumes voadores recriados
digitalmente.
Está
também no texto: a certa altura, o protagonista pergunta qual entre duas versões
possíveis é a melhor para descrever o que lhe aconteceu. A que assistimos tem
um orangotango que flutua num colchão de bananas, um riacho de água doce em
meio a uma ilha encantada e momentos de afetividade com o tigre. A outra é um
massacre, que no livro de Martel inclui canibalismo e um coração "muito
melhor do que carne de tartaruga."
Se a
escolha de Ang Lee não muda a sorte do seu náufrago -com água doce ou iguarias
cardíacas, "o navio afunda, minha família morre e eu sofro"-, é um
tanto mais palatável. Um fã de "O Impossível" poderia acusá-lo de
atualizar uma crença ingênua, que vai do bom selvagem a "Avatar", dos
três porquinhos a "Marley e Eu": é mais fácil conceber um passado idílico
de comunhão com o meio ambiente, ou projetar sentimentos e parábolas éticas no
que é apenas instinto animal, do que aceitar a dor, a impotência e a falta de
lições a tirar de uma tragédia como a de 2004.
Ocorre
que um filme é um recorte -temporal, espacial, dramático. É o que nos permite,
por exemplo, entender a vida inteira de um personagem em duas horas. Uma espécie
de contrato com o espectador: ele aceita a edição das imagens, que tem regras
próprias de verossimilhança e poder de mobilizar emoções, e em troca ganha o
aprendizado ou reconhecimento de algo (na melhor hipótese, saindo da sala de
cinema diferente de como entrou).
Em "Pi",
o contrato é assinado desde o primeiro minuto: sabemos que estamos diante de um
cenário edulcorado, de uma trama que em vários momentos não "fecha",
de um adolescente que parece maduro um pouco além da conta, mas embarcamos -literal
e simbolicamente- numa aventura exterior e interior que transcende a "história
de superação".
Ang
Lee mente para contar uma verdade, digamos assim, enquanto "O Impossível"
usa acontecimentos verídicos para repetir o que já sabemos: com o registro do
tsunami banalizado nas TVs e no Youtube, e a par do impacto virtuosístico de
algumas cenas, a reiteração desse imaginário acaba gerando um efeito anestésico.
A
ele se junta a desconfiança com os truques de Bayona. O slogan do filme diz que
"nada é mais forte que o espírito humano", mas o que vemos na tela -personagens
que escapam por pura sorte de ondas e de infecções- sinaliza o contrário. A
parte que nos cabe no contrato, uma angústia manipulada por desencontros,
coincidências e trilha sonora editorial, serve apenas para realçar uma catarse
de sentimentos previsíveis.
Como
a ideologia e a religião, a arte é uma tentativa de dar sentido à existência,
com a particularidade de que o sentido pode apontar para o caos. "O Impossível"
sabe que é o caso num tsunami, mas não tem coragem de bancar sua aposta. "A
Vida de Pi" finge não saber no de um naufrágio, e chega a se apresentar
como história que prova a existência de Deus, mas se termina de assisti-la com
uma impressão ambígua a respeito -depois de percorrer um caminho generoso de
empatia e beleza.
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