08 de janeiro de 2013 |
N° 17306
FABRÍCIO CARPINEJAR
Esquecido, mas feliz
Eu posso esquecer a receita do
minestrone da avó.
Eu posso esquecer a loja em que
comprei a calça preta favorita.
Eu posso esquecer o restaurante
que escolhemos para passar a virada do ano e o coquetel flamejante que bebemos,
desculpa, fumamos (era a nossa piada).
Eu posso esquecer o autor do
verso “nunca me perdi de vista: detestei-me, adorei-me, depois envelhecemos
juntos”.
Eu posso esquecer o esconderijo
dos óculos de sol.
Eu posso esquecer que toalha de
crochê tem um lado certo.
Eu posso esquecer de desligar o
alarme do celular, agendado na manhã anterior.
Eu posso esquecer que o carnê do
carro vence no dia 7.
Eu posso esquecer a melhor marca
de azeite.
Eu posso esquecer o diretor do
filme em que um casal está perdido em Tóquio.
Eu posso esquecer os aniversários
dos sobrinhos.
Eu posso esquecer que você odeia
aspargos, mas gosta de palmito (o inverso de mim).
Eu posso esquecer de deixar a luz
acesa no corredor, já que tem medo de atravessá-lo durante a madrugada.
Eu posso esquecer minha mania de
enfiar os chinelos debaixo da cama e procurar o par pela casa inteira.
Eu posso esquecer qual é a rua do
sapateiro para salvar a sola dos meus sapatos.
Eu posso esquecer o que significa
tramela.
Eu posso esquecer as diferenças
entre o jasmineiro e o jacarandá.
Eu posso esquecer se desliguei a
cafeteira ou fechei a porta.
Eu posso esquecer o nome de
nossos vizinhos.
Eu posso esquecer de temperar o
bife.
Eu posso esquecer a capital de El
Salvador.
Eu posso esquecer de colocar
protetor ao jogar futebol.
Eu posso esquecer daquele perfume
de figo que você usa, adquirido na Itália.
Eu posso esquecer de levar meus
casacos à lavanderia.
Eu posso esquecer de responder
e-mails de pedidos de entrevista.
Eu posso esquecer de fazer a
cópia da chave da correspondência.
Eu posso esquecer da revisão do
carro a cada 10 mil quilômetros.
Eu posso esquecer a lista dos
anjos que decorei na infância ou como se chama a cobra que morde o rabo.
Eu posso esquecer de ajeitar a
unha do pé direito, que dói ao caminhar muito.
Eu posso esquecer as exceções da
crase.
Não morro de inveja de quem
lembra de tudo, e esqueceu de amar.
Tenho amor, não tenho memória.
Posso esquecer tudo, menos de
você que me acompanha desde sempre. Você me lembra do que vivo esquecendo.
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