RUTH DE AQUINO
26/02/2016 - 19h55 - Atualizado 26/02/2016 19h55
A culpa da branca Fernanda Torres
Um texto pró-homem despertou uma ira desproporcional, febril e típica da chatice correta que nos assola
Sim, você tem mais o que fazer do que acompanhar esse mi-mi-mi contra a opinião da Fernanda Torres sobre machistas, feministas, fiu-fius, mulatas e babás. Um texto, digamos, pró-homem, sumo pecado, em que ela inveja a leveza e o companheirismo masculinos e em que exercita o “livre-pensar”. Livre? Intitulado “Mulher”, no blog #agoraéquesãoelas da Folha de S.Paulo, o texto despertou uma ira uterina desproporcional, febril e típica da chatice correta que nos assola. O pau comeu.
Era um texto transgênero, em que a atriz se mete à vontade numa calça comprida e coça o saco (“machista!”). Um texto transocial, em que ela demonstra ternura por sua babá-mãe e admiração por ser ela um avião de mulher (“elitista e fascista!”). Um texto transracial em que ela fala a palavra proibida: mulata (“branca racista!”). Um texto transerótico, em que ela admite adorar flertes e assobios (“apologista do estupro!”). Um texto transgressor. Não pode, Fernanda. O livre-pensar é só para homens como o que você se orgulha de ter conhecido, o Millôr, que escrevia que “é porque quase todos agimos com muita cautela que uns poucos podem ser audaciosos”.
Fernanda escreveu um texto audacioso sobre a diversidade e as amarras mentais das mulheres. Com provocações, ironias, licenças poéticas e reminiscências. A camarada Fernanda foi tão massacrada que se apressou a escrever outro texto, “Mea-culpa”, em que pede perdão, contrita e arrependida. Fez isso com elegância, antes que virasse o Salman Rushdie das redes sociais de saia e fosse condenada à morte sumariamente pelos tribunais feministas na véspera do Dia Internacional da Mulher.
O Ancelmo Gois pode fazer um concurso em sua coluna, no jornal O Globo, chamado A mulata do Gois, que se baseia sobretudo em atributos físicos – e não é crucificado por isso. Mas você, Fernanda, é mulher, branquela e celebridade. Não pode elogiar a lindeza de nossas mulatas, especialmente de sua babá Irene, porque você é a patroa opressora. Se você fosse loura, Fernanda, a patrulha seria ainda pior. Será que as mulatas que desfilam e sambam no Carnaval são alienadas socialmente como você, Fernanda, e não entendem que estão servindo à “supremacia branca, rica, escravocrata e machista” ao andar seminuas ou peladas? Elas incitam ao estupro? Vamos cobrir de burca as mulatas indecentes e as louras burras, porque despertam os instintos mais baixos dos machos.
Em seu “Mea-culpa”, Fernanda diz que as críticas a ela procedem e confessa ter escrito “do ponto de vista de uma mulher branca de classe média”. O que ela é. Estou curiosa para ler os próximos textos de Fernanda, em que fará piruetas mentais para escrever em primeira pessoa do ponto de vista de uma mulher negra da favela. Claro que se pode escrever levando em conta todos os lados, todos os universos, todos os dramas sociais do Brasil... Só não dá para, numa crônica pessoal, roubar lembranças de alguém que não somos nós.
A polêmica contribui para a reflexão. Argumentos que colidem, com elegância, são salutares. Mas extrair trechos para tirar do contexto, distorcer e ignorar todo o resto, amarrar o autor no poste e linchar é um retrocesso. Chatíssimo, chauvinista, burro e fanático. Há enunciados de Fernanda bem interessantes. Um deles reproduzo abaixo. Eu também detesto a vitimização da mulher por ser um “falso machismo”, mais difícil de combater, aquele em que todos os homens são demônios e todas as mulheres umas santas. Não é a vagina ou o pau que formam um caráter.
“Estou certa de que essa é a minha primeira encarnação como mulher. Apesar do talento para ser mãe, sou menos feminina do que gostaria de ser. Já beirando a idade em que nos tornamos invisíveis ao peão da obra da esquina, rejeito as campanhas Anti-Fiu-Fiu e considero o flerte um estado de graça a ser preservado. A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo. Fora as questões práticas e sociais, muitas vezes a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser.”
Fernanda não ofendeu ninguém. O que me ofende é o sorriso deslocado e tresloucado da Mônica Moura, mulher do marqueteiro de Lula e Dilma, ao ser presa, retrato do Brasil que bate abaixo da cintura. O que nos ofende é mulher de qualquer cor – preta, branca, marrom e amarela – ganhar menos pelo mesmo trabalho, não ter direito legal ao aborto com ou sem microcefalia, não ter creche para deixar o filho, ser espancada e assassinada por motivos passionais ou fúteis, ter tripla jornada de trabalho, ser estuprada e traficada. O resto é fru-fru, ferro e fogo, por favor, não me perdoem
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