27 de fevereiro de 2016 | N° 18458
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
EUFORIA PENALIZADA
A NÓS, TODO RECONHECIMENTO PARECERÁ JUSTO, MERECIDO E, COM BOA VONTADE, ATRASADO
Não sei se ocorre com todo mundo, mas eu tenho, sem lembrança de ter mandado instalar, um calibrador de euforia excessiva. É um tipo sutil de alarme que desperta quando, por qualquer conquista, surge algum indício de soberba. Aos olhos dos outros, claro, porque a nós todo o reconhecimento parecerá sempre justo, merecido e, com alguma boa vontade, atrasado.
Aceitaria com maior conformismo o papel de um GPS moral, que, por caridade, tocasse um bip quando exagerássemos na dose da alegria, mas este sensor a que me refiro é mais cruel, porque pune sem advertência prévia, e deixa sempre uma sensação de culpa, que se arrasta como uma mortificação perpetuada na convivência com o fracasso punitivo.
E nem precisa ser mais paranoico do que a média para perceber que o sistema é caprichoso e implacável: lembro várias comemorações ou homenagens que foram ofuscadas pela percepção clara de alguma situação em que eu poderia ter feito mais ou melhor.
É presumível que alguém, trabalhando com alta complexidade, sem margem para nenhum tipo de erro, esteja mais exposto a estas intempéries, mas a desdita tinha de ocorrer sempre entre a data do anúncio e o dia da homenagem?
Há alguns anos, numa iniciativa do meu amado e saudoso Salimen Jr., do Jornal do Comercio, recebi a comunicação de que fora selecionado para receber o troféu Destaque em Ciência no RS daquele ano. Naquela tarde fiquei rindo sozinho. Na manhã do auspicioso dia, visitava a Lila, uma fofa carinhosa e sorridente, que se recuperava entusiasmada de um bem-sucedido transplante de pulmão esquerdo por enfisema. Quando anunciei os cuidados que deveria ter assim que saísse da UTI, ela me interrompeu: “Isso tudo, a doutora Beatriz, que é meu anjo da guarda, já me alertou. Agora, venha cá e me abrace, porque daqui a pouco te chamam, tu sais correndo e eu fico sem!”.
Depois do abraço, do nada, a Lila teve uma hemorragia incontrolável e morreu. A broncoscopia post-mortem revelou que uma extensa necrose desfizera o implante do brônquio do doador, comunicando-o com a artéria pulmonar.
O longo trajeto entre a Santa Casa e a Fiergs pareceu curto para escorrer e secar as lágrimas. Cheguei em cima da hora. Os homenageados estavam alinhados no palco para a entrega das comendas. Encerrados os discursos, dispersamos. Ao descer do pódio, fui interpelado por uma repórter, morena, linda, e que ria não sei do quê: “Doutor, uma palavra, por favor. O senhor é um orgulho para nós, gaúchos. Qual é o seu sentimento diante do reconhecimento do Estado pela sua magnífica trajetória de vida?”.
“Eu trocaria todos os troféus passados, presentes e futuros pelo brônquio cicatrizado da Lila!”. “Ok. Muito obrigado... vamos agora ouvir... por favor, professor, professor!!”
Ninguém recuaria para explicar, mas ficou claro que, em cerimônias comemorativas, não cabem declarações intimistas. Voltei pensando na última advertência da Lila e arrasado porque nunca mais voltaria a abraçá-la. Este era o único sentimento no dia da homenagem. Exagerada homenagem.
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