17 de fevereiro de 2016 | N° 18448
MARTHA MEDEIROS
Quando Deus esquece os óculos
Ele vê tudo. Era no que eu acreditava quando criança. Ficava muito impressionada com esse poder que nenhum super-herói tinha, e até me sentia meio inibida ao entrar no banho. Aí cresci e descobri que Deus, mesmo sendo onipotente e onipresente, dá suas escorregadelas – mínimas, mas dá. Sendo um ancião (nunca se falou em Deus como sendo um jovem), certamente precisa de óculos. E os esquece em algum lugar, como todos nós. Totalmente compreensível.
Quando são entregues coletes salva-vidas forrados de papel para refugiados que se lançam ao mar, quando médicos faltam aos plantões onde centenas de doentes fazem fila para ser atendidos, quando políticos dos mais diversos partidos compactuam com safadezas em proveito próprio, quando ônibus são depredados a título de manifestação, quando moradores da cidade são assaltados e baleados a qualquer hora do dia, Deus não está vendo nada – está procurando seus óculos, que não sabe onde largou.
Quando pessoas com ossos fraturados esperam anos para conseguir uma consulta na rede pública (se tiverem a sorte de não morrer antes), quando trabalhadores têm seus pertences arrancados pelas mãos de pequenos delinquentes, quando pequenos delinquentes não recebem nenhum tipo de educação e afeto de suas famílias (se tiverem a sorte de ter uma família), quando empresas fazem um trabalho porco para faturar mais, sem se preocuparem com as consequências (estradas esburacadas, pontes que caem, barragens que rompem), quando a ausência de higiene urbana facilita a proliferação de um mosquito indesejável, o que Deus pensa disso tudo? Nada, coitado. Nem viu a confusão. Está ocupado procurando os óculos na cozinha. Só podem estar ali.
E se ele não enxerga o macrocosmo, como enxergará o micro, esses borrões que somos você e eu, cada um em sua casa, com problemas que, se comparados com os da humanidade, nem mereceriam esse nome? Amores que não estão dando certo, a dor no ombro, a artrite, o cabelo que não para de cair, a dificuldade em emagrecer, o vício no cigarro, amigos que se transformam em ogros nas redes sociais, a festa de 15 anos que não deu pra pagar, o emprego que escapou das mãos, o medo da solidão, o pavor de envelhecer, as dívidas em dólar, a depressão bloqueando o entusiasmo. E esse Deus distraído que não encontra seus óculos em local algum.
O preconceito que cada um sofre por causa de sua raça, de sua sexualidade, de sua deficiência, de sua religião. Aliás, você é religioso e tem certeza de que Deus enxerga muito bem, que está vendo tudo, inclusive está de olho numa colunista desaforada que anda duvidando que Ele esteja com os óculos bem na ponta do nariz.
Pode ser, mas vai dizer: não parece que Deus perdeu os seus?
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