terça-feira, 23 de fevereiro de 2016



23 de fevereiro de 2016 | N° 18454 
DAVID COIMBRA

Tragédia hoje, atração amanhã


Lá estava eu, num museu repleto de obras dos maiores mestres internacionais da pintura, podia sublimar meu espírito bebendo da beleza rara e cara produzida pelas mais hábeis mãos humanas, e onde me detive? E o que mais me impressionou?

Um pedaço vazio de parede.

Sim. Deu-se no último fim de semana. Fui ao museu Isabella Stewart Gardner, aqui em Boston, e, em vez de me encantar com um Manet ou um Vermeer, deixei-me hipnotizar por uma moldura sem pintura, feito um bocó.

Era a moldura em que um dia reluzira uma obra-prima de Rembrandt, roubada do museu com outras 12 de outros mestres, numa ação cinematográfica, em 1990. Coisa de cinema mesmo: dois homens chegaram de madrugada, vestidos de policiais. O vigia abriu a porta, eles o dominaram, entraram, pegaram as pinturas e foram embora. Rápido, simples, sem violência nem pistas.

Valor do roubo: US$ 500 milhões. É muito dinheiro. Você compra medidas provisórias, todo um ministério, metade de um congresso e filhos de presidentes com esse valor. Claro, estou falando de alguma república incauta, dessas que não elegem almas honestas.

Os bandidos, hoje, podem estar liderando partidos políticos importantes numa dessas repúblicas. Tudo graças à ousadia que tiveram naquela madrugada.

E foi o que me enfeitiçou, a mim e a todos os visitantes que entravam naquela sala. Eles apontavam para a moldura e balbuciavam: “É ali, é ali”.

Trata-se realmente de bela moldura – clássica, antiga, toda trabalhada. É maior do que uma TV de 50 polegadas. Na base, está escrito o nome do artista, em caixa alta: REMBRANDT. Onde tinha de haver arte, há o nada. Ou, antes, há a parede. E as pessoas se reuniam para olhar para a moldura e teciam todo tipo de comentários. De longe, é a maior atração do museu.

Foi muito inteligente, de parte dos curadores, deixar as molduras vazias, penduradas no mesmo local onde estavam as pinturas. Não se trata de reverência ao crime: é reverência à História.

A História de instituições, países e pessoas é construída por ocorrências boas e ruins, afinal. Se, ao menos, forem grandiosas, significa que a vida não é pequena. E que precisa haver celebração. Não pelo grande infortúnio: pela grandeza da existência.

A maior tragédia americana foi o 11 de Setembro, e o monumento ao World Trade Center, em Nova York, é tão impressivo quanto compassivo. Você fala baixo, quando está lá. Em Berlim, você procura o Muro da Vergonha e lamenta que os alemães, de tão constrangidos com o nazismo, não tenham preservado o bunker de Hitler. Na Idade Média, supostas lascas da cruz de Cristo eram vendidas como relíquias a crentes que tinham mais fé no próximo do que zelo pelo seu dinheiro.

Foi uma tolice do governo de São Paulo implodir o Carandiru. Devia ter sido aberto à visitação pública. Assim como o Central de Porto Alegre. Quando for desativado, se o for, não o implodam: transformem-no num museu de horrores. Já temos o título: “O pior presídio do Brasil”.

E aí está o que queria dizer. Queria dar uma notícia alvissareira aos gaúchos de todas as querências. Pensem: se hoje vocês têm medo de sair de casa, se hoje as ruas são inseguras e os ônibus, os táxis e os lotações também, se hoje os restaurantes são assaltados, se hoje o Estado parece abandonado, no futuro Porto Alegre será, enfim, atração turística: “Esse é o Buraco Quente. Muitos aqui tomaram bala”. “Neste lotação, um ex-governador levou uma coronhada”. “Na parede deste prédio, foi pintado o rosto de um traficante”.

O futuro! O governo está construindo o futuro!

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