terça-feira, 23 de fevereiro de 2016



23 de fevereiro de 2016 | N° 18454 
MÁRIO CORSO

O peso da morte


Eu sempre me senti afortunado por ter convivido com todos os meus avós e alguns bisavós. É bom saber de onde saímos e sentir-se um fio de um rio mais largo, perceber-se a somatória de sonhos, encontros, acertos e erros dos nossos antepassados.

A parte chata são as despedidas. Foram muitos enterros, chorei em muitos velórios, mas até perder meu avô paterno nunca tinha carregado um caixão. Herdei meu nome desse avô, acreditava por isso que nossa ligação era, de alguma forma, especial. Na hora de pegar na alça, dei uma curva no meu pai e cheguei primeiro. Escolhi a do meio, de tal forma que pudesse pegar com a mão direita.

Meu avô penou muito nos seus últimos dias e perdeu muito peso. Estava feito um passarinho quando se foi. Pensava que levá-lo seria fácil. Que nada, parecia um caixão ao avesso, alças de madeira e estrutura em bronze. Tirei de rio canoas alagadas mais leves do que aquilo. Ajudei a içar fusca atolado com menos dificuldade. Era mesmo meu avô, ou pegamos por equívoco o féretro de Buda?

Fora eu e meu primo Jones, do outro lado, também ao centro, os outros voluntários eram contemporâneos do falecido e a idade somada creio que ultrapassava a do Brasil. Um dos amigos saíra do hospital especialmente para ir prestar as honras. Ele estava na minha frente e, apesar de pensar que segurava a alça, na verdade a usava de bengala. Isso é o que eu enxergava, vá saber como era o resto da quadrilha.

Solene mas desengonçado, o cortejo me fazia sentir dentro de uma missão do exército Brancaleone. O pequeno trecho entre a capela onde era velado e a igreja de Dois Lajeados para missa de corpo presente parecia intransponível. Os cem metros viraram quilômetros. A escadaria da igreja foi o teste final. Já imaginava o vexame de rolar escada abaixo com o caixão, meu avô e seus amigos.

Foi uma missa tocante para todos e sinistra para mim. Não é fácil ouvir uma cerimônia em que se lembram as virtudes do finado Mário Corso. Quando levamos o nome do falecido, a cerimônia parece um ensaio para a nossa vez. Finda a missa, restava levar o ataúde ao cemitério.

Quando terminei a tarefa, exaurido, comentei com meu primo nossa empreitada e reclamei do peso. Ele estava tão exausto quanto eu. Um senhor de idade, que ouviu de soslaio a nossa conversa, se dirigiu a nós com a autoridade de quem já segurou muitas alças:

– Mas vocês não entendem nada mesmo. É sempre assim, é o peso da morte. Não existe caixão leve!

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