28 de fevereiro de 2016 | N° 18459
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Samba-canção na antiga capital
Mais um grande livro de Ruy Castro, que depois de contar a história da Bossa Nova e a de Carmen Miranda – além de ter biografado Nelson Rodrigues e Garrincha, sempre em texto de alta qualidade – resolveu repassar o mundo do samba-canção, aquele gênero ou subgênero que floresceu entre o fim da II Guerra e do Estado Novo, 1945, e mais ou menos a chegada da Bossa Nova, ou das várias bossas novas que mudaram muito a cara do Brasil a partir de 1958.
O livro se chama A Noite do Meu Bem: a História e as Histórias do Samba-Canção (Cia. das Letras) e é muito bom de ler. Passeei por suas páginas sem pressa, querendo mesmo visitar aquele período que, segundo disse certa vez Robert Musil, é o mais obscuro da vida de qualquer um, a saber, aquele lapso de tempo que medeia entre os nossos 20 anos e os 20 anos de nossos pais.
A Noite do Meu Bem, bem, devo dizer com certo orgulho que sei de cor esse esplêndido samba-canção, de Dolores Duran, cuja história vem toda esmiuçada no livro. Ela é, de fato, uma das heroínas da narrativa: nascida e crescida pobre, tendo que abandonar os estudos antes do ginásio, virou uma intérprete e, mais ainda, uma compositora finíssima. Morreu antes de completar 30 anos.
O livro é uma coletânea de histórias, com um fio cronológico a dar certo ritmo para o conjunto. Há muita atenção para boates e restaurantes de Copacabana e arredores, com detalhes até cansativos, de vez em quando, sobre quem era dono de qual, quem vendeu e quem comprou, o pianista que saiu desta para aquela, etc. Mas no conjunto leva-se também essas informações na boa, pelo talento narrativo do autor e pelo interesse que sabe dar às informações que coleta.
Os marcos cronológicos do livro são diretamente ligados ao mundo da política. Tudo começa em 1946, quando o presidente Dutra baixou um decreto fechando e proibindo os cassinos. E era neles que havia se desenvolvido a geração anterior, ao menos na camada “Brasil para turista”, como Carmen Miranda. Bloqueada esta via, sugere o autor, entram em cena as boates, onde também haveria muita música, mas muito mais discreta – nada de orquestras grandes, cenários com cascatas ou grandiloquência, tudo de conjuntos mais jazzísticos, em espaços bem pequenos, tudo a meia-voz.
E tudo termina em torno de 1960, quando Brasília é inaugurada e o Rio deixa de ser a capital do país, condição que havia mantido por dois séculos. (Dois séculos não são uma improvisação; Brasília era e é uma eterna improvisação, que nos custa os tubos.) A era do samba-canção é a segunda grande geração do rádio – aquela que pegou já a gravação em alta-fidelidade e uma notável melhoria na qualidade das transmissões radiofônicas, tudo antes da televisão.
Justamente a grande atmosfera das boates e de toda a indústria do disco em torno do samba-canção teve a ver com o mix de cidade cosmopolita, noite bem servida por bebidas e comidas, talentos musicais em todos os metiês e, não menos, o poder, econômico e político, que estavam concentrados ainda no Rio – São Paulo, para quem está chegando agora na conversa, só se tornou uma cidade culturalmente forte depois disso.
Para meu gosto, há uma grande escorregada no livro todo, que não macula sua qualidade geral. O problema é um baixo- contínuo que tantas vezes me incomoda em textos de cariocas narcisistas, sejam eles nativos ou adotivos: a certeza de que o Rio é a melhor cidade do mundo, e só os parvos não percebem isso. Isso nunca é dito de peito aberto, claro.
Mas numa passagem se pode ler uma expressão torta dessa convicção: ao evocar a mudança de capital para Brasília, diz Ruy Castro que “o Rio habituara-se a espalhar generosamente entre pessoas e instituições de outros estados benesses que, pelo menos em parte, poderiam ter ficado pela cidade mesmo”, de forma que, “até por isso, o Rio deveria receber vastas compensações do governo federal”.
Essa é uma opinião que tromba com os fatos, os singelos fatos econômicos, desde o tempo do Império. O espaço não permite desenvolver essa conversa, mas os historiadores – sugiro o novo e ótimo livro de Jorge Caldeira com a biografia Júlio Mesquita e Seu Tempo, editora Mameluco – apontam claramente para o duro fato de que o Rio, como Capital, teve imensas vantagens ao longo do tempo, sugando a riqueza produzida em várias províncias em benefício das classes confortáveis ali instaladas.
Mas ok, foi no Rio que Dolores Duran criou sua obra, devidamente reposta no belo livro de Ruy Castro.
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