06 de fevereiro de 2016 | N° 18437
DAVID COIMBRA
O dia em que tudo mudou
Lembro-me do dia exato em que deixei de ser jovem. Estava sozinho em um quarto de hotel. Fitei o teto. Depois, fiz rolar vagarosamente o olhar, até encontrar minha imagem no espelho da penteadeira. Então, não é que tivesse avistado uma ruga mais profunda ou um novo cabelo branco. Não. Foram os olhos que me informaram. Os olhos, Jesus dizia, são as candeias do corpo. Os olhos, Poe dizia, são as janelas da alma. Os olhos me disseram, naquele dia, que não era mais jovem.
Foi assim de repente, de um minuto para outro.
Sempre conto da moça que vi ficar gorda bem na minha frente, no bar da Redação da Zero Hora. Até aquele momento, ela era considerada magra. Aí mordeu um quindim. O bar da Redação vendia quindins grandes como tampas de chaleira, amarelos como a camisa da Seleção, de uma luminosidade cremosa que os tornava irresistíveis.
Ela não resistiu. Deu uma dentada voraz no quindim. E ali, naquele instante mágico, parecia que podia ver os lipídios borbulhando-lhe pelo corpo e explodindo em bolotas em seus culotes. Quando ela voltou para sua mesa na Redação, já era uma gorda.
Foi lindo. Era a História se fazendo diante de mim, ainda que fosse uma história pessoal.
Na manhã de 11 de setembro de 2001, vi a História do mundo todo se fazendo diante de mim, e, ainda que tenha sido pela TV, vi ao vivo. Estava acontecendo, e eu estava assistindo. Também vi o Brasil mudar, e não foi só uma vez.
Um ano que transformou o Brasil foi 1979. Naquele ano, exatamente naquele ano, o Brasil deixou de ser jovem. Até então, o Brasil era um menino, como eu e meus amigos éramos, nos confins da zona norte de Porto Alegre. Aí nos tornamos outros.
Em 1979, os muros de Porto Alegre eram pichados com uma frase que se situava entre o alvissareiro e o aliviado: “Deu pra ti, anos 70”. Um ou dois anos depois, o Giba Assis Brasil lançaria um filme com esse título.
De fato, os anos 1970 haviam acabado e, com eles, um tipo de brasileiro. O brasileiro, agora, era mais contestador, mas também mais reclamão; menos ingênuo, mas também mais cínico. O brasileiro, que antes aceitava viver sob o governo, como um inferior de nascença, passou a ver o governo não mais como seu superior, e sim como seu inimigo. E o governo era realmente inimigo, já que era um governo imposto. Só que, na cabeça do brasileiro, governo e Estado são a mesma coisa. Assim, o Estado virou inimigo, e isso é um problema, porque o Estado, afinal, somos todos nós.
Talvez esse último parágrafo tenha ficado um pouco confuso, só que foi exatamente isso que aconteceu, e isso tudo é muito confuso. Ainda vivemos nessa brumosa imprecisão que estourou precisamente naquele ano, 1979. Por que tudo mudou exatamente naquele naco de tempo entre janeiro e dezembro? Não sei. Diga-me você, que sabe mais do que eu.
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