sábado, 13 de fevereiro de 2016



13 de fevereiro de 2016 | N° 18444 
DAVID COIMBRA

A tragédia de não sentir pena

É feio, é vergonhoso, mas, confesso, não fiquei com pena daquele homem que apanhou e teve sua casa queimada, em Capão da Canoa. Tenho visto cenas de bandidos sendo agredidos na internet. Não aprovo, não gosto, algumas me dão náusea. Mas, desta vez, o que me veio foi indiferença. Não senti júbilo, é verdade, mas também não senti consternação. Ele é acusado de ter estuprado e espancado uma menininha de cinco anos de idade...

O crime é terrível. Mas também é terrível eu não experimentar nenhuma compaixão por ele. Pior: não me sinto mal por isso. Porque a culpa desta minha insensibilidade não é minha. A culpa é dos deputados e senadores do Brasil. Foram eles que elaboraram uma legislação que, nesta semana, o novo chefe de polícia do Rio Grande do Sul definiu, com propriedade, como “flácida”.

A culpa também é dos maus governos que tivemos nos últimos anos, que nada fizeram para reformar o Código Penal, sobretudo do governo Lula, que reunia as melhores condições para promover as mudanças de que o Brasil precisava, mas que só trabalhou pelo seu projeto de poder.

Somos todos vítimas dessa lei flácida, todos: os brasileiros com medo, a menina violada, os que bateram no bandido e inclusive o bandido agredido. Porque, se há Justiça, não há justiçamento. Ele é um monstro, sim, mas é também um doente. Teria de ser tratado como tal.

O drama da segurança pública é o maior drama do Brasil. Acredite: não é a educação, não é a saúde. É a segurança pública. Costumo dizer que no Brasil, hoje, a construção de novos presídios é mais importante do que a construção de novas universidades.

E é. Está tudo errado na segurança pública, e não por coincidência. A segurança pública foi abandonada de caso pensado, no Brasil. Tornou-se questão ideológica. A ditadura militar ficou muito identificada com questões de segurança. Nada mais natural: tratava-se de um regime “militar”.

Lembro do famoso discurso de Ulysses Guimarães, ao aprovar a Constituição de 1988:

– Nós temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!

Esse ódio e esse nojo se transferiram para tudo que fosse vagamente associado à ditadura. E qual, dentre todos os instrumentos utilizados pela sociedade, era o mais associado à ditadura? Pense na frase pichada clandestinamente nos muros do Brasil, nos anos 1960 e 1980:

“Abaixo a repressão!” O brasileiro tinha ódio à repressão. Ódio e nojo.

Bem. Qual é o aparelho repressor do Estado?

A polícia.

O brasileiro passou a relacionar polícia com ditadura e a confundir autoridade com autoritarismo.

As polícias foram desvalorizadas. O policial ganha pouco e não conta com o respeito de grande parte da população. Seu trabalho é frustrante, ele prende o bandido hoje e o encontra na rua amanhã. In extremis, decide fazer a justiça que foi feita com o estuprador de Capão: ele é duro, já que a lei é flácida.

Aí ceva-se outra distorção: o policial acostumado a usar a força como punição compensatória, não como ferramenta legal de repressão, corre o risco de cometer crime, em vez promover a correção de injustiças. Tragédia idêntica se dá com o cidadão que lincha o ladrão ou que toca fogo na casa do tarado.

Ao mesmo tempo, como a segurança é considerada “de direita” e um instrumento de autoritarismo, ninguém se importa com quem prende nem com o que é feito com quem é preso. Os presídios são masmorras infectas. Estão lotados, não há mais vaga nem para molestadores de crianças.

Difícil ser pior. Por isso tudo, a cena do estuprador com o rosto inchado não me comoveu. É triste dizer isso. Mas é verdadeiro. A lei flácida está nos brutalizando. A tragédia de não sentir pena.

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