sábado, 13 de fevereiro de 2016



14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
ANTONIO PRATA

Habeas Corpus

Eu não fumo maconha há muitos anos porque quando eu fumo maconha eu não vou parar numa música do Bob Marley, eu vou parar num livro do Franz Kafka. Na presença do THC, em vez de assoviar Easy Skankin’, meu superego me empurra pra dentro d’O Processo: logo nos primeiros tragos, das masmorras do meu subconsciente surge um japonês da PF e me arrasta para uma gélida Curitiba existencial, sob acusações as mais variadas: falsidade ideológica, preguiça, estelionato, timidez, fraude, incompetência e outras contravenções previstas em nossos códigos penal, civil e moral.

Lembro das noites sem fim da adolescência: enquanto os outros gargalhavam em volta, inexplicavelmente à vontade dentro de suas epidermes, eu afundava no sofá sentindo ter acordado de sonhos intranquilos transformado num monstruoso inseto: “Eu sou ridículo. Minha cara é ridícula. Minha voz é ridícula. Meu jeito de dançar é 10 vezes ridículo. Eu sou virgem. Eu não toco violão. Eu não jogo futebol. Eu não sei o que fazer com as mãos quando eu ando nem o que falar pra Ju M. quando paro ao lado dela, na fila da cantina. 

A única coisa que eu sei fazer é piada, mas as piadas são como tapumes pra esconder essa obra mal acabada que está do meu nariz para dentro, essa obra que talvez nunca termine e talvez seja a tal construção que já é ruína da música do Caetano Veloso. Eu vou virar um adulto de tijolos à vista, um adulto com as vigas à mostra, um adulto de laje batida e esquadrias de alumínio”. Depois eu ia comer melancia com ketchup, o efeito passava e eu esquecia da tormenta – até o próximo baseado.

A adolescência felizmente acabou – glória ao Senhor! – e entre as duas ou três coisas que aprendi com o tempo é que se fumar maconha é um ingresso para a Colônia Penal, a coisa mais sensata a fazer é não comprar o ingresso, ou seja, não fumar maconha. De lá pra cá, esta casinha a que chamo de mim mesmo até que foi melhor acabada. Ao longo dos anos passei massa corrida, pintei as paredes, botei sancas e rodapés: não sou mais virgem, casei, tenho uma profissão, dois filhos e um punhado de amigos para quem ligar, quando o calo aperta. A vida, pensava eu, ia bem.

Hoje, porém, aconteceu um negócio estranho: despertei de sonhos intranquilos às quatro e meia da manhã sentindo que havia me transformado num monstruoso inseto – e não tinha fumado maconha. Abri os olhos, olhei pro teto e vi a sombra do japonês da PF. “Perdeu, Antonio!”, dizia ele. “A fraude foi descoberta. Aquela foto sorridente instagrada do bloco, com a sua mulher: vocês estavam às turras, minutos antes – por culpa sua. 

Aquele vídeo fofo com os filhinhos, colocado no Facebook: você atrasa no trabalho, de propósito, para não ter que dar banho. Aquele texto todo serelepe em que abraça uma árvore, no final: você não tem abraçado nem os seus amigos. Você só trabalha e resmunga – mais resmunga do que trabalha. Você vende felicidade e não é feliz. Isso é apropriação indébita. Enriquecimento ilícito. Você é um estelionatário, uma empresa de fachada, um laranja de si mesmo.”

Ofereci as mãos para as algemas. O japonês da PF fez um não com a cabeça e me escoltou até o escritório, onde, coagido por mais quatro agentes do meu superego, bombadinhos e armados com fuzis, escrevo minha confissão.

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