19 de fevereiro de 2016 | N° 18450
DAVID COIMBRA
O passado deixa marcas, às vezes boas
Estava no recôndito da Redação da Zero Hora, tempos atrás, e uma colega passou caminhando lá do outro lado, na ala situada entre as antigas editorias de Geral e Economia. Aí um jovem repórter com quem eu conversava olhou para ela e comentou:
– Não acredito que essa mulher já foi bonita algum dia.
Fiquei chocado. Ocorre que a mulher a quem ele se referia com tamanho desdém era uma de nossas semideusas. Verdade que não poderia mais ser considerada uma menina, mas todos os veteranos a reverenciavam e, no remanso dos chopes com os amigos, observavam a seu respeito:
– Ai...
É aquela história do leão: o leão está velho, desdentado, fraco, míope, mas você não vai entrar na jaula, não é? Claro que não. Afinal, ele é o leão. Ele sempre será o leão. Melhor não arriscar.
Uma rainha sempre será uma rainha. O rapaz que fizera aquela apreciação depreciativa, no entanto, nunca a vira em horário nobre. Nunca a desejara. Não havia nenhuma história por trás do que ele enxergava.
Agora mesmo, durante o Carnaval, a Globo exibia uma matéria sobre um bloco do Rio. O nome do bloco é Mulheres de Chico. Chico, no caso, o Buarque. Pois uma moça, assistindo à reportagem, comentou a respeito:
– Não sei o que é que uma mulher pode ver nesse Chico Buarque...
O olhar desses dois jovens é um olhar sem preconceito, e o preconceito de que falo é o PRÉ-conceito. Quer dizer: há um conceito antes do olhar. O Chico Buarque, para aquela moça, não é o homem que escreveu versos como:
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Não.
Para ela, Chico Buarque de Hollanda é só um velhinho que fazia uns sambas num passado remoto. Tipo um Noel Rosa.
Esse olhar neutro é intrigante. Como as pessoas que nunca me viram antes me enxergam, quando me olham pela primeira vez? Como eu veria aquela minha amiga, se a encontrasse agora e não a tivesse conhecido no passado?
Desconfio que não teria a mesma opinião do meu jovem colega da Redação.
Desconfio que identificaria nela um jeito de pisar no chão da Terra que só possui uma mulher que foi muito bela e muito admirada pelos homens.
Os homens que olhavam para suas pernas de louça de moça e não podiam pegar, os homens que a queriam e que sonhavam tê-la, os homens que a cortejaram, que a cercaram e lhe fizeram promessas, esses homens que, vez em quando, até a aborreceram, esses homens também lhe cevaram o espírito de confiança, de segurança e, por que não?, de orgulho. Sim, ela se move ainda com o orgulho da rainha que foi. Seu tempo de juventude talvez já se tenha ido, mas ela sabe que era uma fera. Era uma leoa. E uma leoa sempre será uma leoa. Melhor não arriscar.
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