15 de fevereiro de 2016 | N° 18446
CÍNTIA MOSCOVICH
O LIVRO DO JORGE
Deve fazer uns nove anos desde o dia no qual o Jorge Furtado me colocou na mão a fotocópia de Toda a Vida pela Frente, de Émile Ajar, livro lançado pela Rocco e já esgotado no Brasil. A recomendação era de que o lesse de imediato: melhor livro da vida de nosso querido cineasta, tratava-se de obra vencedora do Goncourt, escrita sob pseudônimo por Romain Gary em 1975.
Gary, o Jorge fazia questão de recordar, era aquele que tinha sido herói da aviação na II Guerra Mundial, um dos roteiristas para o cinema de O Mais Longo dos Dias e, muito importante, marido de Jean Seberg, a bela atriz de Acossado e de Bom Dia, Tristeza.
Como a pilha de leituras é coisa infinita, fui deixando “o livro do Jorge” para depois. Ele nunca parou de me cobrar a leitura – e eu já achava divertida aquela minha involuntária rebeldia.
No Carnaval, resolvi fazer jus à generosidade jorgiana. Li de uma sentada: o volume é uma joia, e daquelas bem raras. Narrado pelo ponto de vista de uma criança, o livro conta a história de Momô, menino muçulmano criado numa espécie de pensão para filhos de prostitutas e que fica no sexto andar de um prédio em Paris.
A dona do lugar, Madame Rosa, uma judia sobrevivente de Auschwitz, cuida para que as crianças não sejam levadas pelo serviço social. Momô e Madame Rosa são personagens formidáveis: densos, complexos e, melhor, críveis. Comovente na medida, a obra de Ajar/Gary realça a nobreza dos laços que a necessidade criou e que a amizade preserva.
Vencedor duas vezes do Goncourt (a primeira foi com As Raízes do Céu, de 1956), especulava-se que Gary tenha escrito sob pseudônimo para driblar o regulamento do prêmio, que é concedido apenas uma vez a cada autor. Romain matou-se com um tiro um ano após o suicídio de Jean Seberg. Um bilhete dizia que seu suicídio nada tinha a ver com o da mulher. Os originais de Vida e Morte de Émile Ajar, que explicavam o imbróglio, foram publicados postumamente.
Exemplares de Toda a Vida pela Frente em português podem ser encontrados em sebos, virtuais ou não. Amigos que indicam livros bons são bem mais raros.
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