sábado, 13 de fevereiro de 2016



13 de fevereiro de 2016 | N° 18444
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

OS LIMITES DO ÓDIO


Amadurecido em ruminações crônicas, ele tem absoluta semelhança com a morte

O Gotardo e o Gonçalo são gêmeos mas, por razões familiares, cresceram separados, aos cuidados dos avós maternos e paternos, depois que a mãe morreu em um acidente de ônibus, duas semanas depois de completarem três anos.

Ainda que os avós se esmerassem, as condições de vida oferecidas a um e outro eram muito diferentes, porque muito diferentes eram as condições econômicas das duas famílias. Todos os presentes e regalias desfrutados pelo Gonçalo incomodavam o Gotardo, que tinha de se contentar com privilégios escassos e brinquedos modestos.

É provável que essa desproporção tenha servido de combustível para uma briga monumental que estremeceu a família no Natal de 1996, quando tinham 14 anos. Depois disso, os parentes tentaram inutilmente uma reaproximação, mas nem a morte do pai, cinco anos depois, conseguiu amenizar o rancor. Nunca mais trocaram uma palavra. Nem no velório do pai. 

No Dia de Finados de 2009, o Gotardo acelerou o passo e, recostado numa árvore fora do alcance da visão, aguardou que o irmão, acompanhado da mulher e do filho, encerrasse a visita ao túmulo dos pais e desaparecesse. Também nada comentou quando soube por familiares que o Gonçalo estava com leucemia. Como se sabe, o ódio amadurecido em ruminações crônicas tem absoluta semelhança com a morte.

Em leucemia, o tratamento moderno é capaz de eliminar as células tumorais da medula, matando-a e, com isso, a enfermidade é controlada. O passo seguinte, rumo à normalidade e à saúde, é o transplante de medula. O oncologista ficou entusiasmado com a informação de que o Gonçalo tinha um irmão gêmeo, por tudo o que isso representava de chance de um doador perfeitamente compatível. Mas a reação do paciente não podia ter sido mais inesperada: “Imagina se eu vou aceitar e ficar devendo obrigação àquele frouxo recalcado! Prefiro morrer!”.

Desse diálogo o Gotardo não tomou conhecimento mas, quando consultado se concordaria em fazer os testes para confirmação de compatibilidade, também se negou, dizendo que, para ele, o irmão já tinha morrido num Natal distante, quando o humilhara diante de toda a família. Duas semanas depois, com a lista nacional de voluntários repassada sem nenhum doador adequado, o Gotardo ligou para o oncologista e combinou um café. Ele pensara melhor e precisava conversar.

“Eu vou fazer os testes e, se for compatível, quero ser colocado no banco de medula como um doador anônimo. Não suporto esse cara que sempre se referiu a mim como um imprestável. Não gostaria que ele pensasse que estou me esforçando para que ele mude de opinião a meu respeito. Acontece que nem lembro mais do que ele disse na noite da humilhação. Mas eu simplesmente não conseguiria conviver com a ideia de que meu irmão morreu por conta do meu ódio. Na verdade, só não queria que ele soubesse que, além de imprestável, sou tão frouxo que nem consigo mais odiar!”.

O transplante foi um sucesso. A medula, como se presumia, está imune ao rancor.

E o Gonçalo recuperou-se rapidamente, convencido de que Deus dera valor a quem merecia, e o ajudara a sobreviver sem ajuda de pessoinhas insignificantes.

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