09 de fevereiro de 2016 | N° 18440
DAVID COIMBRA
A sabotagem
A esquerda é feminina. A direita, masculina.
Há quem defina a esquerda como “paternalista”. Não. A esquerda é maternal. A esquerda quer consolar, conceder e mimar, como uma mãe. A direita, sim, pretende ser disciplinadora, como um pai.
Claro, tudo isso em tese. Tudo isso levando em conta os estereótipos de pai e mãe, de direita e esquerda.
Seria ótimo, se fosse tão simples. A realidade prática é mais confusa e sofisticada. Ou, para empregar o termo da moda criado pelo filósofo polonês Bauman, a realidade prática é “líquida”.
Em determinadas realidades, governos mais à esquerda ou mais à direita não se tornam problema, ao se sucederem. Essas determinadas realidades ocorrem se a democracia representativa está consolidada. Até porque as crises econômicas são cíclicas. Logo, a democracia tem de sobreviver a elas.
Nos Estados Unidos, quando o mercado lambuzou-se com liberdade demais, causando a depressão de 1929, o país lançou mão da esquerda. Roosevelt assumiu, fez uma administração quase socialista, o Estado regulou o mercado e o país se reergueu.
Mais tarde, nos anos 1980, a direita foi chamada tanto nos Estados Unidos, com Reagan, quanto na Inglaterra, com Thatcher. Ele e ela, aliás, eram amigos, conversavam sempre, partilhavam estratégias. Ambos abriram as economias de suas nações, permitindo o crescimento do mercado e o aumento da riqueza. Externamente, pressionaram tanto os países que estavam “atrás da Cortina de Ferro”, na definição de Churchill, que a cortina rasgou e a União Soviética se desuniu.
Ora governa um mais à direita, ora governa um mais à esquerda, e fica tudo bem. Não é o fim do mundo. Um governo mais para lá ou mais para cá vai corrigir rumos ou distorcê-los, mas jamais mudará o sistema que faz a sociedade funcionar. O pacto social é aceito e compreendido, e esse pacto se expressa através da lei.
No Brasil e na América Latina não existe esse entendimento. São outras realidades. Na América do Sul os governos são sempre de salvação nacional.
Dias atrás, li uma entrevista do frei Leonardo Boff em que fica plasmado o pensamento atrasado que permeia a intelectualidade sul-americana. Boff foi fazer uma crítica ao PT e errou em tudo. Toda a sua análise foi torta, porque seu ponto de partida é torto. Boff já sai errando quando faz uma comparação impossível, do Brasil com a Bolívia – o Brasil é mais parecido com os Estados Unidos do que com a Bolívia.
Depois, ao concluir que o problema do PT foi o presidencialismo de coalizão, Boff não tenta fazer uma correção da democracia representativa; tenta sabotar a democracia representativa, afirmando que o PT devia ter governado com os “movimentos sociais” e não com o parlamento. No Brasil é assim: ou servem-se do sistema os que estão em cima ou servem-se do sistema os que estão embaixo. Ninguém imagina que o sistema deveria servir a todos.
Esse desapreço à democracia representativa é o que torna a América Latina o que ela é. Não são as formas de governo da direita ou da esquerda. São as tentativas de solapar o sistema por fora ou por dentro. Por fora, a democracia é vitimada por golpes de força, como os de 1964 e de 1930 no Brasil. Por dentro, é vitimada pela metástase de um partido ou de um governo pelo corpo do Estado, como sugere Boff e, aliás, fez o PT.
Mas isso é política. Não é a política que faz do Ocidente cada vez mais uma civilização feminina. No próximo texto, juro que digo o que é.
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