segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016



15 de fevereiro de 2016 | N° 18446 
DAVID COIMBRA

A senha perfeita


Resolvi anotar todas as minhas senhas num único caderno. Tratava-se de tarefa inadiável que sempre adiava. Mas, neste fim de semana, a temperatura despencou para 22 abaixo de zero, na Nova Inglaterra. Aí pensei: “Vinte e dois abaixo de zero é o clima ideal para enfim reunir todas as senhas num só lugar”. Então, tomei coragem e saí a fim de comprar um caderno e dois tintos da Califórnia.

Não sou grande comprador de coisas, mas cadernos me entusiasmam (tintos também). Um caderno em branco é a coisa mais linda. Sempre penso que vou começar algo maravilhoso num caderno novo. Capricho muito na primeira folha. Nas seguintes, nem tanto.

Desta vez, você não vai acreditar, mas, desta vez, preenchi nada menos do que oito folhas do caderno, e o fiz com letra redonda e bem cuidada. Oito folhas de senhas!

Acho que isso prova, definitivamente, que sou importante. Afinal, o fato de possuir tantas senhas significa que tenho acesso a muitos lugares exclusivos, como o jogo de Minecraft do meu filho.

Significa, também, que a vida se tornou perigosa. Quando eu era guri, senha não passava de instrumento de soldados em guerra ou de bandidos em esconderijo. O soldado saía para uma missão e, na volta, no escuro da noite, ao se aproximar do quartel, ouvia o grito da sentinela no portão:

– A senha!

Se ele vacilasse, o outro ficava mais agressivo:

– A senha! A senha!

Mas o soldado não se lembrava. Como era mesmo?... E a sentinela, eriçada, apontava-lhe o rifle:

– A senha! Ou atiro!Finalmente, a senha vinha à mente do soldado. Em geral, um verso de Shakespeare: – “Como voltar feliz ao meu trabalho, se a noite não me deu nenhum sossego?”

– Ah... Pode passar...Ufa.

Meu avô nunca deve ter tido uma senha na vida. E eu possuo oito páginas de caderno cheias delas.

Alguém vai dizer que eu devia usar sempre a mesma senha. Já tentei. Não me deixam. Uns exigem só números, outros só letras, há os que querem números E letras, os que pedem letras em maiúsculas e minúsculas e os que demandam sinais como @#$%¨&*. Muitas senhas trocam sozinhas em determinado tempo, outras caducam e tenho de modificá-las.

Os piores são os críticos. Bolo uma senha e o cara lá do outro lado da internet desdenha: “Muito fraca”. Como assim “muito fraca”? Isso é problema meu, rapaz! Me deixa com a minha senha!

Mas eles não deixam. Assim, sou obrigado a ser criativo na invenção de senhas novas e “fortes”.

E agora, escrevendo-as no meu caderno, percebi que elas revelam muito de mim. Não vou contar quais são, claro, ou você saberá todos os meus segredos, mas digo que algumas senhas causaram-me suave nostalgia.

Deparei com signos antigos, de um tempo que já se foi. Ali estava, naquele pequeno código, um desejo de uma época, um desejo que não me embala mais, mas que mostra quem fui. Noutra senha, tive a boa ideia de colocar a data querida de um acontecimento importante, importante só para mim, mas, ah, que ano foi aquele...

Finalmente, reencontrei uma senha que nunca mais usei e que tinha feito de um pedaço de nome de mulher. Uma senha que era um pouco a outra pessoa, uma costela que eu lhe tinha extraído e guardado para mim. Havia esquecido, havia esquecido... Mas a senha cumpriu sua função: me deu acesso a um lugar recôndito, um lugar que nem existe mais. Então, olhei para o céu muito azul e muito gelado da Nova Inglaterra. Tomei um gole do tinto da Califórnia. E deixei o passado lá atrás.

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