terça-feira, 9 de fevereiro de 2016




09 de fevereiro de 2016 | N° 18440 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O BEIJO NA PAREDE

Estava devendo a mim mesmo uma leitura que resultou muito boa e muito auspiciosa: o romance O Beijo na Parede, de Jeferson Tenório (editora Sulina). O livro saiu em 2013, eu deixei para ler depois, outros livros furaram a fila. Mas eis que finalmente encontrei as horas necessárias, e fui muito feliz na leitura.

O tom do relato lembra o de Holden Caulfield, do Apanhador no Campo de Centeio, o clássico de J. D. Salinger, em que um adolescente de classe média toma a palavra para contar sua história desviante. O livro virou um clássico em parte pela voz mesmo, pela força com que soube representar o ponto de vista e a linguagem daquele jovem.

Mas o livro do Jeferson tem como protagonista o João, com seus inacreditáveis 11 anos e uma vida de privações inimagináveis para Caulfield. Nascido no Rio, de mãe negra e pai branco (este, gaúcho de origem), ele perde a mãe no Rio e o pai quando já mora em Porto Alegre. 

O que vem pela frente é pura dureza: será mais ou menos adotado por uma prostituta (que apanha do cafetão), convive com um travesti e com dois velhos muito próximos da morte num cortiço imprecisamente localizado entre a Voluntários e a Farrapos, e compartilha a vida na rua com amigos de história parecida com a sua, o Pouca Força e o Breno.

A sucessão dos episódios – entre o cortiço, um terreiro, a rua da Praia, um súper, o boteco do seu Joaquim – obedece à força do acaso, que rege a vida de quem nada tem e depende mesmo da sorte. Por isso mesmo, não há um enredo progressivo, mas uma vida estacionada ou em decadência, embora o clima da narrativa se adense no terço final, alcançando um desfecho significativo, que não cabe comentar aqui para não estragar o gosto do leitor que vier chegando.

Minha única restrição talvez nem tenha muito sentido, ou tem um alcance muito restrito: contado em primeira pessoa pelo próprio João (as cenas em que ele passa fome são particularmente duras), o romance se articula numa linguagem de vez em quando inverossímil para o menino que ali fala o que vive e vê. Mas o próprio gesto de contar tem seu quê de não realista – para quem, afinal, um guri miserável e desamparado vai falar? Quem o ouve?

Estreando muito bem na narrativa longa, Jeferson Tenório dá folgadas mostras de ter tino e tutano para dar voz a personagens significativos, e mais notáveis ainda por serem gente sem voz audível pelas classes confortáveis na vida cá fora da ficção. O que vem por aí?

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