sábado, 27 de fevereiro de 2016



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
ANTONIO PRATA

Mal ajambrados


O problema não era nas minhas costas, disse o médico, era na nossa espécie. Então tirou da estante um velho livro de anatomia e mostrou que a coluna e o abdome humanos haviam se desenvolvido durante milhões de anos para sustentar quadrúpedes, não bípedes. Acontece que lá nas savanas da África, num dia iluminado para o intelecto e aziago para a lombar, algum ancestral conseguiu se apoiar em duas pernas, posição que lhe permitiu enxergar mais longe e ter as mãos livres para construir ferramentas, fazer cafuné e jogar joquempô. 

A ereção do hominídeo impressionou muitíssimo as hominídeas do bando, que vieram todas correndo e gritando “Seus genes! Seus genes! Queremos espalhar seus genes!”, razão pela qual passamos a andar sobre duas pernas e a bufar com as mãos nas costas, per saecula saeculorum. O médico fechou o livro e me indicou um pilates.

Enquanto ergo lentamente o “core”, ao lado de mais seis ou sete entrevados bípedes que buscam, a duras penas, o fortalecimento torácico, sou tomado por um pensamento: e se, em vez de levantar, o macacão tivesse deitado? E se, em vez de passarmos de quatro para dois apoios, tivéssemos evoluído para nenhum? Ah, que futuro lindo nós perdemos! Em vez de andarmos envergados por aí, enfrentando passo a passo a inclemente gravidade, viveríamos nos arrastando ou rolando mundo afora, feito leões marinhos, feito morsas gordas e descansadas, sem jamais desconfiar que sob nosso adiposo sleeping-bag corporal haveria horrores chamados “lombar” ou “escoliose” ou “lordose” ou “hérnia de disco”.

Dizem os biólogos que o bipedalismo foi crucial para o desenvolvimento humano – e não me refiro só à pedra lascada, ao cafuné e ao joquempô. Tirar a fuça do chão e pôr os olhos no horizonte sentenciou a primazia da visão sobre o olfato, do intelecto sobre os instintos, da cultura sobre a natureza e daí pra escrevermos sonetos, inventarmos a pizza com borda recheada de Catupiry e projetarmos drones que entregam sonetos ou pizzas com borda recheada de Catupiry foi um pulo. Mas quem disse que, deitados, não poderíamos ir ainda mais longe – mesmo sem sair do lugar? 

Quem sabe o que teria acontecido se, em vez de Homo erectus, depois Homo sapiens e Homo sapiens sapiens, evoluíssemos para Homo statelatus, depois para o Homo statelatus sapiens e – por que não? –, Homo statelatus sapientisimus? Sim, pois se enxergar mais longe nos deu a chance de encontrar mais comida e mais comida resultou no aumento do nosso cérebro, imagina o tamanho da nossa cachola com todas as calorias economizadas em uma existência 100% horizontal. Seríamos hoje morsas cabeçudas discutindo física quântica e James Joyce com as panças esparramadas no chão?

Não há como saber. A biologia só consegue traçar o caminho percorrido, não os infinitos labirintos genéticos que deixamos de percorrer. Me resta apenas amaldiçoar o ancestral que primeiro se ergueu, fazer mais trinta segundos de “fortalecimento de oblíquo” e três séries de “abdominais laterais sobre a bola suíça”, a fim de ajudar minha mal ajambrada verticalidade a dar com menos dor os passos que lhe restam antes que um susto, uma bala ou os vícios me ponham, definitivamente, na horizontal.

ANTONIO PRATA É ESCRITOR, AUTOR DE MEIO INTELECTUAL, MEIO DE ESQUERDA (2010) E NU, DE BOTAS (2013). ESCREVE SEMANALMENTE NESTE CADERNO

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