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terça-feira, 8 de março de 2011
08 de março de 2011 | N° 16633
PAULO SANT’ANA | CYRO S. MARTINS Fº (interino)
A vez em que quase morri
Vou contar de uma vez em que quase morri.
Vou contar isso porque foi num acidente de carro. Vou contar isso porque eu era jovem e porque é comum que alguns jovens, como eu era, achem a morte uma possibilidade tão remota que dificilmente pensem nela como uma possibilidade real.
Fazem bem, se é para viver melhor. Mal, se é para arriscar a vida.
Eu e dois amigos havíamos comprado um carro de terceira mão. Um enorme carro dos anos 70, um daqueles “de autoridades”, carro de ministros, diplomatas. Um potente monstro bebedor de gasolina feito em aço.
Voltávamos de uma festa quando fomos abalroados por uma camionete.
Se a morte é o que senti, percam a esperança de qualquer coisa do lado de lá. Não sei se desmaiei, se entrei em choque. Não lembro nada a não ser de retomar a consciência já em pé, no alto de um barranco, olhando para nosso monstro, destruído, lá no fundo.
Lembrei que eu estivera dentro dele quando uma mulher, à minha frente, virou-se. Ao me ver, gritou:
– Aaahhh!! Meu filho, tua cara está aberta!!
De fato. Um enorme corte no supercílio esquerdo, que se bifurcava acompanhando, para uma direção, a sobrancelha, para outro a lateral do rosto, expunha uma posta de gordura branco-amarelada, que em meio ao sangue, farto nesta região, certamente me dava uma aparência tenebrosa.
Lavei o rosto em uma torneira do posto de gasolina que ficava perto e procurei um guarda que tentava organizar o trânsito:
– Seu guarda, por favor: eu estava num dos carros acidentados. Preciso ajuda.
O guarda me disse que uma ambulância e carros particulares haviam levado “os outros” e que conseguiria auxílio para mim. Parou um casal, que me levou ao pronto-socorro. Não saber o que acontecera aos “outros” foi parte do pavor que me assolou a partir dali. Porque, quando eu percebi o quanto tinha chegado perto da morte, percebi também que meus amigos poderiam estar mortos. E o pessoal do outro carro poderia estar morto.
Definitivamente, não éramos imortais.
Ninguém morreu, nem ficou com sequelas.
Mas entendemos, nós que éramos jovens e que tínhamos uma vida inteira à frente e que tínhamos uma banda de rock e sonhos e o mundo, que a morte não dá a mínima para a idade. Entendemos que juventude não garante imortalidade. Nem sequer prolonga a vida. Que não há charme algum em morrer. Que a morte está sempre esperando esta mistura de euforia e rodas para atacar.
Minha família sofreu muito, enquanto eu me recuperava. Tinha sido por pouco, todos imaginavam, e sofriam pensando “e se...”. Eu, enquanto minha cara desinchava, cada vez mais percebia esse sofrimento a que submetia meus pais e irmãos e amigos. Não há nada de romântico nisso.
Um tempo depois, eu já trabalhava em ZH, quando uma campanha contra a violência no trânsito colocou em exposição carros acidentados em diversos pontos da Capital. Na área verde entre as duas vias da Erico Verissimo, bem ao lado do prédio de ZH, colocaram... exatamente: a carcaça de nosso monstro de aço.
Uma coincidência. Ou uma grossa ironia. Para lembrar que carro, se mal usado, mata. E seres humanos morrem, não interessa a idade.
Não vale a pena arriscar. Garantia de um sobrevivente.
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