quarta-feira, 30 de março de 2011



30 de março de 2011 | N° 16655
DIANA CORSO


Avulsos

Há ocasiões em algo que os pacientes dizem interpela seu analista. Uma paciente contava uma história recorrente na vida de muitos: ela é solteira e falava de uma reunião familiar, na qual tentava sem sucesso encontrar lugar na conversa de seus pais e irmãos, cunhados e sobrinhos, todos legitimados pela condição de casal e entrosados na empreitada da reprodução.

Embora não tenha constituído família, já havia comparecido acompanhada a esses eventos e sentia-se melhor, pelo menos não parecia ser uma extraterrestre. De repente ela repetiu uma frase minha, pinçada de uma entrevista, da qual eu não lembrava: “A sociedade trata muito mal os avulsos”. O que eu hipoteticamente já sabia, soou como se fosse a primeira vez.

A frase ressoava, desejosa de associações e de uma interpretação. Precisei entendê-la melhor para descobrir por que aqueles que não se apresentam pareados ou com seus descendentes pagam o preço da hostilidade ou da indiferença. Não só solteiros padecem, também viúvos e separados vivem essa sensação de que estão vivendo algo errado.

A interpretação que me ocorreu foi a seguinte: identifiquei-me com a queixa da minha paciente porque, quando criança, nos anos anteriores ao segundo casamento, minha mãe também era avulsa. Vivemos ambas, ela viúva e eu órfã, essa condição de deslocadas. Fazia-me inveja a aparência superior das famílias completas, nós éramos tortas.

A família ainda guarda algum prestígio em nossos tempos incrédulos e sem esperança, impõe sua estrutura nuclear – casal com filhos – enquanto cânone, lugar certo para a transmissão de valores e construção da personalidade. Só isso já seria fonte provável de tal mal-estar, vivido pela paciente e na minha infância.

Mas há um detalhe a mais: ela é gay e quando comparecia com uma companheira às reuniões todos lhe eram gentis, por mais reacionários que fossem. Então não se trata só de tradição, família e propriedade.

O que mexe com os pareados é uma inveja do avulso, sua possibilidade de estar só, livre para dispor do seu tempo, para escolher caminhos sem consultar ninguém. A solidão pode ser dolorida, mas aos avulsos raramente faltam amigos com quem dividir prazeres e dores, além de amores, que podem até não durar, mas emocionam.

Fazer escolhas é perder as outras vidas possíveis e lembrar disso abala estruturas. Os avulsos representam liberdade perdida, vínculos desfeitos, morte, a labilidade do amor. Sua presença desperta desejos e fobias, por isso a sociedade os constrange. Toda diferença questiona.

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