segunda-feira, 21 de março de 2011



21 de março de 2011 | N° 16646
PAULO SANT’ANA | CARLOS ANDRÉ MOREIRA - INTERINO

O valor do inútil

Os senhores desculpem começar assim, despudoradamente na primeira pessoa, mas é meio que importante para o que vem a seguir, então me perdoem por iniciar este texto contando aos muitos que provavelmente não sabem que o autor destas linhas ocupa a vaga de crítico literário titular deste mesmo jornal que os senhores estão lendo.

É importante, eu já mencionei, porque volta e meia essa função me joga na situação de debater com alguém (sempre tem alguém) sobre “qual a função da literatura” ou “qual a função da leitura”.

Quase sempre a disposição dos interlocutores no cenário é a mesma: alguém comenta comigo que a leitura precisa redundar em alguma transformação ou vantagem, ainda que íntima, para o leitor, sob pena de perder o valor. Alguém comenta, eu dizia, e minha reação é discordar, que leitura não precisa ser útil.

Em alguns casos até sim, como fonte de consulta, pesquisa, embasamento sobre um tema. Em outros, não. E isso não significa defender a leitura como mero entretenimento, porque aí ela estaria sendo útil de qualquer forma. O valor primordial e até mesmo revolucionário da literatura e da leitura é que elas não precisam ser úteis.

A utilidade é o metro pelo qual o mundo é avaliado hoje em dia. Nossas relações pessoais, mesmo em nível secundário, cada vez mais se pautam por quem é útil – não apenas em termos materiais, mas sentimentais. Alguém nos faz sentir bem, queremos por perto.

Alguém nos deprime, evitamos. Alguém é bom conosco, infla nosso ego, então queremos essa pessoa por perto. O que estabelece para tudo e para todos um valor, põe tudo numa imensa vitrina e nos transforma em produtos em exposição – esta é a versão intimista, pocket, digamos assim, de uma ideia que nem é minha, é defendida, entre outros, por Zygmunt Bauman no livro Vida para Consumo.

Para conseguir emprego temos de vender uma imagem, para conquistar alguém vendemos imagem, para conseguir amigos (na vida real ou, mais flagrantemente, no Facebook). Vendemos uma imagem, ainda que inconscientemente, para conseguir qualquer coisa.

A proliferação dessas publicações que querem ensinar jovens promissores a se portar no mercado é apenas um signo financeiro do fenômeno. Tudo está disposto na vitrina para ser consumido. E para ser consumido, tudo precisa ter uma utilidade.

O consumo é a medida de tudo, e é claro que isso se reflete na forma como se vive em sociedade. Quem tem direitos é o consumidor – no Brasil das “leis que pegam” e das “que não pegam”, o Código de Defesa do Consumidor é uma das que de fato pegaram.

Não quer necessariamente dizer que estamos mais “cidadãos” porque consumidores reivindicam seus direitos. Às vezes isso implica elevar à categoria de cidadão apenas o sujeito que tem grana para ser consumidor. Não está longe da democracia praticada antigamente – bem antigamente: em Roma alguém tinha de comprovar patrimônio para participar da vida pública.

Quando a mentalidade de cidadania que se divulga é a do consumo utilitarista, da compra como direito básico, quem paga exige. O que, no outro lado da proposição, significa que quem não paga está fora.

E quem acredita estar vivendo numa sociedade perfeita porque é consumidor não se dá conta que aqui no Brasil nem mesmo essa maneira algo tortuosa de construção social vigora.

O Estado cobra o que muitas vezes não entrega: educação, investimentos em saúde, segurança, programas sociais. E portanto ora vivemos em um imenso shopping center, ora em uma birosca de terceira classe

Então por que exigir utilidade na fruição da arte? Quando tudo vale por ser “útil”, dar valor a algo justamente por sua inutilidade é uma das melhores chances de escapar desse círculo esquizofrênico.

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