sábado, 19 de março de 2011



19 de março de 2011 | N° 16644
CLÁUDIA LAITANO



Marolas e maremotos

A moça coberta de tinta surgiu ao lado do táxi como um daqueles malabaristas de sinal vermelho, equilibrando nada mais do que um sorriso e uma latinha de moedas. Não olhou para mim nem para o motorista, embora o trote aparentemente envolvesse algum tipo de interação com os carros. Parecia absorvida demais pelo próprio contentamento para distrair-se com qualquer outra coisa – uma aparição colorida iluminando a paisagem cinzenta de uma terça-feira.

No lado opaco do cenário, vinha eu distraída com as preocupações do dia quando a visão da menina colorida me obrigou a parar de pensar nas coisas práticas da vida para desfrutar aquele instante de felicidade alheia que atravessava o caminho. A felicidade muito exuberante, vocês sabem, sempre nos acabrunha um pouco, mais ainda se ela nos apanha assim, numa terça-feira cinzenta e a caminho do trabalho.

Quis muito ser de novo aquela menina no primeiro dia de aula da faculdade que eu já fui, mas logo me consolei pensando que não adiantaria muito voltar no tempo porque, aos 17 anos, raramente a gente se sente tão feliz assim quanto os adultos indo para o trabalho podem fantasiar quando nos veem de dentro de um táxi.

Ali, no meio da Goethe, sem a profundidade de um escritor alemão, me ocorreu que a percepção da passagem do tempo é uma dose homeopática de consciência trágica, uma marola de microssofrimento que pode nos surpreender a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, lembrando que somos todos frágeis e finitos – contra todas as evidências em contrário.

O microssofrimento é uma ondinha tão inofensiva que muitas vezes nem lembramos dela no final do dia, mas, se estivermos atentos, ela vai lentamente instaurando em todos nós a dimensão impermanente da existência.

Uma vida é feita de marolas, com as quais facilmente aprendemos a conviver, mas também de terríveis maremotos – aqueles acontecimentos tão grandiosamente trágicos que despertam em nós o sentido da injustiça. Por que eu? Por que agora? O filósofo estoico Sêneca, que assistiu um terremoto reduzir a escombros a província de Campânia, no Império Romano, matando milhares de pessoas, dizia que é preciso, o tempo todo, esperar o inesperado.

Não por pessimismo ou mau humor, mas porque desastres, naturais ou não, sempre farão parte da nossa vida. Vivemos divididos – lembra Sêneca – entre a certeza de que amanhã será igual a hoje (uma sensação de continuidade que nos dá estabilidade) e a possibilidade, não tão remota assim, de que algo repentinamente aconteça e mude nossa vida para sempre. A pessoa sábia, diz o filósofo, é aquela que aprende a aceitar essa impermanência como parte da vida, sem sofrer inutilmente por isso.

Quando o chão tem o péssimo hábito de sair do lugar de vez em quando, como no caso do Japão, essa sabedoria estoica acaba se transformando em um traço cultural. Nada é inesperado, tudo pode acontecer. Um bom motivo, por exemplo, para aprender a valorizar uma terça-feira cinzenta perfeitamente tolerável.

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