terça-feira, 22 de março de 2011



22 de março de 2011 | N° 16647
CELSO GUTFREIND | CELSO GUTFREIND (Interino)


Entre a flauta e a faca

Ao Moacyr Scliar, gente boa para todos os tempos.

Cada época tem seus jeitos de pensar. Isto inclui sentimentos e um modo de ver o mundo que, tempos depois, já é outro. Há quem diga “era melhor no meu tempo”. Também há quem acredite na ambivalência e afirme que era melhor e pior. A estes me agrego com a ideia de que, no passado, era pior para encurtar distâncias, mas era melhor para agregar-se.

Há poucos dias, o jogador Leandro Damião zoou o Grêmio. Foi em Caxias do Sul, com gestos que evocavam a possível injustiça na recente vitória tricolor diante do mesmo Caxias. Pouco depois, o jogador gremista Carlos Alberto deu o troco ao mencionar a derrota colorada no Mundial de Clubes. Também com gestos, na hora de comemorar o gol, momento máximo desta brincadeira chamada futebol.

Brincadeira? Antigamente, sim. A rivalidade no esporte era vivida como lúdica, molecagem infantil no melhor sentido da vivência. Aliás, vinha da música, arte mais aberta em sua linguagem, a expressão tocar flauta. Antigamente, tocava-se flauta.

Embora as atitudes dos atletas não tenham passado de gestos sem violência, a repercussão foi a pior possível. Criou-se um clima de afronta, que a internet e outras redes só fizeram ecoar. A flauta deu lugar à faca.

No passado, morria-se mais de parto e apendicite, o câncer era quase sempre fatal, clamava-se menos por democracia, e tudo isto era pior. Mas brincava-se mais, e isto era melhor. As brincadeiras, hoje e sempre, começam com a presença do outro. A gente brinca para expressar-se sobre os encontros, e o que se expressa pode ser a alegria ou o medo diante de uma rivalidade, como fizeram os jogadores.

Para fazê-lo, o outro precisa estar ali durante um tempo – sim, havia mais tempo – até que possamos brincar sozinhos como se estivéssemos acompanhados. Os bebês usam e abusam da presença alheia antes de seguir com as próprias forças. Depois, vão buscar novos apegos para continuar a viver.

Ao esvaziar encontros verdadeiros, o nosso tempo vai arranhando esta riqueza principal: brincar com o vazio, com a vida e a morte, mesmo sabendo que com ela não se brinca.

Poder manter-se conectado ou acelerar a troca de informações é uma conquista que, sem brincadeira, trouxe um upgrade à nossa época. Mas abusar disso, em detrimento de simplesmente estar junto, deleta boa parte da melhora.

Por ter sido hoje, a brincadeira entre Leandro Damião e Carlos Alberto ganhou um sentido bélico, evocando mais a ameaça do que a música. Fosse antes, eles se encontrariam realmente para trocar risos, simbolizar discórdias, transformá-las. Como quem brinca. Como quem toca flauta. Talvez ninguém ficasse sabendo, o que também era melhor. E pior.

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