quarta-feira, 23 de março de 2011



23 de março de 2011 | N° 16648
JOSÉ PEDRO GOULART


O outono e a lua

1. Diante da Lua cheia, como essa que aconteceu no sábado, com a luz do sol ecoando naquele imenso rebatedor, ceticismos não têm muito sentido. A Terra mantém-se em equilíbrio, imantada pelo campo gravitacional do seu único satélite: devemos muito à Lua – não só inspiração poética.

Não houvesse a Lua e o nosso planeta não conseguiria se manter na órbita elíptica que faz em torno do Sol. Pode-se dizer dos doidos que eles vivem no mundo da Lua, mas, na verdade, viver no mundo da Lua é se manter em equilíbrio.

2. Um novo relacionamento é como atualizar o carro. Você sai da concessionária com seguro renovado, cheirinho de zero. Alguns nem tiram os plásticos dos bancos no início, cuidam com carinho e dedicação.

Exibem o carro aos outros como se fosse um troféu – e acham que é (e talvez seja). Depois é que vêm os arranhões. Uma batida, um choque. Cabe uma cerinha? Uma polidinha? A conservação exige cuidados, ou logo será a hora de uma nova troca; mas cuidado, não se encontra corações em vitrines.

3. Em dias quase outonais, nada como uma volta de bicicleta (mesmo estando em Porto Alegre). Mas e se você deparar, numa das raras ciclovias da cidade, com um casal andando lado a lado, impedindo sua passagem? Se espera de ciclistas uma certa compreensão.

Afinal, é um clube da felicidade e da sorte, esse dos ciclistas de dias outonais, sol brando, brisa ecumênica. Foi meu caso no domingo, de modo que pedi passagem e lembrei: “Vocês estão ocupando duas pistas”. A resposta vem em forma de desaforo. Um choque de realidade. Um ponto de tinta no papel de cera branco.

4. Um terremoto como esse do Japão é uma traição da natureza, contraditória com uma visão mística do cosmos. Ok, somos fabricantes da garrafa pet e outras porcarias que espalhamos por tudo. Mas um terremoto? Sorrateiro, expansivo, autoritário, apocalíptico. Um terremoto que ainda produz ondas gigantes, em frente a elas as cidades viram maquetes de isopor habitadas por formigas.

5. Ao sujeito que me destratou enquanto eu passeava de bicicleta, quero dar um conselho: faça sexo com sua mulher, ou logo você vai precisar trocar de carro. Já a Lua Cheia é uma surpresa redundante, tanto quanto o terremoto: sabemos de ambos, mas sempre nos portamos como se fosse a primeira vez. Há beleza e desaforo em nós e na natureza, como lidar com isso – e o quanto podemos – é a questão.

A folha que cai dourada, banhada de luz, é bonita e morta. O abrandamento que o outono trás tem muitas reticências. Do mesmo modo quando há um escurecimento da imagem na tela do cinema, as reticências completam o sentido onde já não existe mais o que dizer. Antes, a brasa, o verão escaldante. Em breve o inverno gelado a iminência de mais uma prova de vida: “tem que morrer para germinar”.

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