terça-feira, 22 de março de 2011



22 de março de 2011 | N° 16647
PAULO SANT’ANA | LÉO GERCHMANN (Interino)


Eu-Tu

Diálogo estranho com gente esquisita.

No caso, eu e uma operadora de telemarketing, semanas atrás.

O telefone trina. Absorto no trabalho, pego o aparelho com os olhos grudados no texto que escrevo.

– Boa tarde, Zero Hora.

– É o senhor Rodrigo Lópish?

– Não, o Rodrigo não está. De qualquer forma, e este não é o ramal dele. Tu podes ligar outro dia para...

– Entendo. Onde ele eshtá?

– Na Tunísia.

– Entendo. Estarei ligando mais tarde.

Passam-se 20 minutos.

– O Rodrigo Lópish eshtá?

– Ele não volta tão cedo, está viajando.

Outros 20 minutos.

– O Rodrigo Lópish retorna quando?

– Quando o Muamar Kadafi deixar.

– Quem?

– O Muamar Kadafi.

– Entendo.

Não pretendo esculachar operadores de telemarketing em geral. Apenas tento mostrar como não pode atuar um profissional, seja qual for sua área. Ainda adolescente, muito moleque que era, tive contato com o livro Eu e Tu, do filósofo Martin Buber. Não sei por que aquilo me atraiu, na estante da casa dos meus pais – viram, pais, mantenham os livros perto dos filhos! Li do jeito que deu. Mas foi revelador. Falava de interação e envolvimento com a vida. Ali, decidi: minha vocação era escrever, sabia disso. Logo, queria ser jornalista e amar o que viria a fazer um dia.

Nosso call center, aqui da RBS, é um exemplo do Eu-Tu de Buber. Mostra que pode haver um profissional de primeira linha por trás daqueles telefonemas muitas vezes exasperantes para nós que estamos brincando de Polly com a filhinha pequena, tendo uma conversa de pai pra filho com o mais velho ou namorando a mãe deles.

A eficiência e a sensibilidade dessa gente, aqui em ZH, é surpreendente. Conheci alguns deles em recente curso para gestores da empresa. Não são invasivos, têm bom senso e ainda nos ajudam a vender o fruto do nosso trabalho.

Do Buber, vou ao futebol, uma das minhas duas áreas de maior interesse na juventude – a outra era de gênero, o gênero oposto. Lembro de Jardel, o centroavante mais centroavante da história recente tricolor, que intuía o naco do campo de onde ficava mais fácil fazer gols.

De Mauro Galvão, o zagueiro que se colocava tão bem que parecia três. De Taffarel, o goleiro colorado que não se atirava na bola, pois sempre estava bem colocado. De Pelé, soberano dos atalhos. Todos experts na arte de dominar o seu espaço, como faz o próprio titular desta coluna, o tambor mais ecoante da nossa aldeia.

Como é importante saber do seu dom na vida para perseguir a utopia da felicidade!

E, depois do Buber, do futebol e do outro gênero, reflito sobre meu filho Pedro, um moço de quase nove anos, que gosta de bater bola, mas só se sente à vontade quando joga comigo. Venho tentando tirar dele essa inibição.

Outro dia, na praia, eu queria driblá-lo, e ele me cercava, enquanto a Paulinha, quatro anos, observava e pedia, lá no guarda-sol, pra eu passar-lhe a bola. Por mais que eu avançasse na direção do meu marcador, negaceando, ele só me cercava. Nada de fazer o que eu teria feito na idade dele: ir em busca da bola afoito, levar um toquezinho pro lado e ver o adversário entrar minha área adentro. Então, fez-se a luz. E eu disse, com a sabedoria que ilumina um pai ao desvendar a lição correta:

– Pedro, as pessoas têm um dom, um jeito próprio de fazer as coisas. E é importante identificar essa vocação. Tu és volante. Marcas bem, chutas forte. É o estilo do Fábio Rochemback, meu filho, o capitão do teu Grêmio.

Pedro ficou feliz.

Tomara que isso faça dele um homem que assimile o Eu-Tu. E que a Paula, a menina que divide com o Pedro as minhas atenções e o meu coração, também tenha percebido, escutado e aprendido.

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