sábado, 26 de março de 2011



26 de março de 2011 | N° 16651
PAULO SANT’ANA | MILENA FISCHER (interina)


Delicadeza

Escrevo diante da sala do diretor de Redação da Zero Hora, que nesse momento conversa com o proprietário desta coluna, meu generoso amigo Paulo Sant’Ana. Curioso vê-lo através do vidro, gesticulando no silêncio. Ele, que sempre tem palavras para todas as coisas.

Em sua genialidade, em sua infantilidade, em sua megalomania, ele jamais deixa de se expressar em brados e murmúrios. Dividimos bons e maus hábitos, e o melhor deles é a cumplicidade. Me é caro ser cúmplice de uma pessoa rara, que navega entre momentos de insanidade e mais pura ciência das coisas.

O mundo está cheio de iguais e este amigo é ímpar.

Por mais dolorosas que já tenham sido nossas discussões, a cada dia ele se trai deixando mais claro que, no fundo, catedrais habitam seu coração – como escreveu um dos seus poetas prediletos, Augusto dos Anjos.

Talvez eu não tenha nascido para ser mãe. Não creio que se venha do berço com esse tipo de atributo. Senão, o que nos ensinaria a vida? Como seguiríamos sendo surpreendidos?

Não creio. Mas também não sei, porque sei pouco dessas afirmações que envolvem certezas tão grandiosas quanto ter nascido para ser mãe ou pai ou gênio ou feliz ou triste. Nasce-se.

O resto nos inventa a vida. Não sei de nada disso. Mas desconfio – e apenas desconfio – que vem da minha filha esse meu sentimento de “nasci para ser mãe”. E não apenas mãe, mas mãe, também.

Desconfio que esse sentimento de estar no papel certo venha das risadas de uma criança que é um estardalhaço de alegria. Quase constrangedora. Desconfio que venha daí, dos choros, dos colos, das manhas, das pequenas mãos no meu colo, do olhar inquisidor ou indignado ou tranquilo. Uma criança tem um olhar para cada coisa desse mundo e é nesses momentos que desconfio que é um filho que faz a mãe.

A jornada de aprendizado que os pais têm a chance de ter com os filhos pode ser tão grandiosa quanto a tarefa adulta de educar as crianças. Cada momento contém em si uma oportunidade – a qual usualmente não aproveitamos por distração, excesso de tarefas e até uma certa preguiça. O ponto de vista de uma criança é tão cristalino e ausente de ruídos que é uma falta não aproveitar essas oportunidades para mudar o foco. Há os exemplos óbvios.

Um dia de chuva nunca é uma lástima para uma criança, mas a chance de pisar em poças – e sorrir. Uma noite sem luz elétrica é uma aventura – e a oportunidade de trocar a televisão e o computador por conversas. Mas as oportunidades não estão apenas nos momentos de diversão. Uma desavença na escola pode resultar em um castigo ríspido – ou então em uma oportunidade de entendimento e cumplicidade. A diferença entre amar e criar é profunda – embora possa parecer sutil.

Sem as certezas, seguimos sendo surpreendidos pela vida. O que é incrivelmente enriquecedor. Ser capaz de perceber oportunidades é uma dessas surpresas – que não pertence apenas ao universo de pais e filhos. Em um engarrafamento de trânsito, há a possibilidade de ser paciente e a oportunidade de ceder a vez ao outro e ser, simplesmente, gentil. Ao gastar demais, existe a oportunidade de aprender a lidar com as finanças.

Ao conviver com uma pessoa rara, existe, muito além da sua excentricidade, a possibilidade de viver momentos inesquecíveis. E esta é uma oportunidade em extinção.

É bom ver o meu amigo de novo, perambulando por aqui. Amanhã ele voltará a ocupar seu espaço nesta coluna.

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